Série “O Rio de Janeiro desaparecido” XII – O Teatro Lírico (Theatro Lyrico)

O Rio de Janeiro desaparecido. Esta é uma série diferente. Quando foi concebida, inspirada pelo livro Vestígios da paisagem carioca: 50 lugares desaparecidos do Rio de Janeiro (2019), de Isabela Mota e Patricia Pamplona, e por artigos sobre o Rio Antigo, de autoria de Charles Julius Dunlop (1908 – 1997), já haviam sido publicados na Brasiliana Fotográfica 11 artigos que deveriam pertencer à série. Então, o artigo sobre o Theatro Lyrico, com o qual o portal presta uma homenagem à arte e aos artistas é, na verdade, o 12º da série, mas é o que a inaugura com essa denominação.

Com um registro do alagoano Augusto Malta (1864 – 1957), que foi o fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro, entre 1903 e 1936, vamos conhecer um pouco da história desse teatro que, em sua época, foi o centro artístico e cultural do Rio de Janeiro. Pelo palco do Lyrico passaram artistas internacionais como o maestro italiano Arturo Toscanini (1867 – 1957), que lá regeu pela primeira vez uma orquestra, os tenores italianos Enrico Caruso (1873 – 1921) e Francesco Tamagno (1850 – 1905), as atrizes francesa Sarah Bernhardt (1844 – 1923) e Gabrielle Réjane (1856 – 1922); e a italiana Eleonora Duse (1858 – 1924). Vários artistas nacionais também atuaram no Lyrico, dentre eles as cantoras Bidu Sayão (1902 – 1999) e Carmen Miranda (1909 – 1955), a pianista Guiomar Novaes (1895 – 1979) e os atores (1882 – 1932) Procópio Ferreira (1898 – 1979) e Raul Roulien (1904 – 2000).

Sob o assoalho removível da plateia, que tinha 1400 cadeiras, havia um picadeiro! O teatro contava com uma Tribuna Imperial, 86 camarotes de diferentes categorias, 252 galerias e 168 fauteuils de varandas. No total, tinha 2500 lugares. Segundo o historiador Luiz Edmundo (1878 – 1961) era o melhor teatro da cidade. A inauguração do Theatro Municipal, em 14 de julho de 1909, diminuiu a importância do Lyrico, mas devido à qualidade de sua acústica, considerada notável e superior a do Municipal, manteve fiéis os apreciadores do canto lírico. 

“O melhor teatro da cidade é o Lyrico, uma ruína dourada, mostrando uma reles entradinha de ladrilhos, cercada de espelhos, uns espelhos muito velhos, muito sujos, muitos enodoados e uns porteiros de apresentação grotesca e mal ajambrada, sorrindo debaixo de densas gaforinhas postas em caramanchão e usando, nas noites de grandes premières, luvas brancas com punhos de celluloide”.

Luiz Edmundo em O Rio de Janeiro do meu tempo

 

No livro Palco e Picadeiro – o Theatro Lyrico, seu autor, o historiador Francisco Vieira destacou o fato do teatro ser tão integrado à vida da cidade que, em dia de estreia, os bancos dos bondes eram forrados de flanela braanca para que os passageiros a caminho do teatro não sujassem seus trajes. Logo o povo apelidou os veículos de “bonde de ceroulas”. 

O Theatro Lyrico nasceu e morreu sob o signo do carnaval: seu primeiro evento foi um baile de mascarados, em fevereiro 1871, e, seu último, um ensaio de ranchos carnavalescos, em janeiro de 1932. Foi demolido entre 1933 e 1934. No artigo do Jornal do Brasil de 28 de dezembro de 1933 sobre sua demolição foi publicada a fotografia produzida por Malta, em torno de 1928. Destacamos aqui a importância da digitalização de fotografias para a pesquisa e também para a difusão e consequentemente para a própria preservação de acervos fotográficos. Além disso, as imagens, a partir de recursos tecnológicos como o zoom têm uma visibilidade muito melhor e podem ser acessadas com uma qualidade bem maior.

 

 

 

 

Um pouco da história do Lyrico 

 

bartolomeu

O açoriano Bartholomeu Corrêa da Silva (1828 – 1917) / Palco e Picadeiro – o Theatro Lyrico

 

O açoriano Bartholomeu Corrêa da Silva (1828 – 1917), nascido na Ilha Graciosa, em junho de 1928, deixou Portugal aos 14 anos, veio para o Brasil, estabeleceu-se em Campos dos Goytacazes e depois, já com sua mãe e duas irmãs, foi para São Fidélis, onde adquiriu um armazém. O diretor de um circo com cerca de 10 componentes chegou à cidade e alimentava sua trupe com comida e bebida da loja de Bartholomeu. Porém, o diretor fugiu e deixou uma dívida e a trupe para trás. Assim Bartolomeu tornou-se dono de um circo. Começava a história do Theatro Lyrico!

Bartholomeu decidiu então deixar São Fidélis e apresentou sua Companhia Gymnastica Equestre, em Niterói  (Correio Mercantil, 14 de março de 1856, terceira coluna).

 

 

No mesmo ano, já no Rio de Janeiro, a capital do Império, a Companhia Equestre instalou-se, provisoriamente, no Campo da Aclamação (Correio Mercantil, 1º de maio de 1856). No ano seguinte, voltou ao local (Correio Mercantil, 31 de maio de 1857, segunda coluna).

 

 

Em setembro de 1857, o Circo Olympico volante foi armado em São Cristóvão (Correio Mercantil, 12 de setembro de 1857).

 

 

O artista e então administrador do Teatro São Pedro de Alcântara, João Caetano (1808 – 1863), convidou Bartholomeu para realizar um espetáculo. O contrato foi assinado em 15 de dezembro de 1857.

 

 

 

Em 1858, o Circo Olympico passou pela rua Nova do Conde, no Catumbi, e também pela rua São Clemente, em Botafogo (Correio Mercantil, 6 de janeiro e 23 de março de 1858).

 

 

 

Finalmente estabeleceu-se, na rua da Guarda Velha, atual Largo da Carioca, na época, o coração do Rio de Janeiro, uma localização privilegiada (Correio Mercantil21 de agosto e 25 de agosto de 1858).

 

 

 

Em 1863, Bartholomeu cercou o terreno da rua da Guarda Velha com um gradil e inaugurou, ao lado do circo, no ano seguinte, uma cervejaria, a Jardim Concerto, com produção própria, onde seria hoje a rua Senador Dantas esquina com a avenida Chile. O empreendimento foi um sucesso.

 

 

Aos poucos a lona do circo foi substituída por um circo de madeira, tornando-se uma casa de espetáculos circenses e teatrais. Famílias, inclusive a de dom Pedro II (1825 – 1891), frequentavam o circo e foi o imperador que propôs a Bartholomeu que construisse um teatro nos moldes dos melhores que existiam na Europa. Então Bartholomeu encomendou um projeto em que, com a retirada do piso de madeira da plateia, o teatro se transformava em circo equestre. Para isso contou com a ajuda do engenheiro Bittencourt da Silva. Segundo o historiador Francisco Vieira:

“Retirando-se o assoalho do teatro, em cima do qual as cadeiras da plateia eram cuidadosamente dispostas, tinha-se de volta o picadeiro. Logo se percebeu a perfeição da acústica da sala. Provavelmente devido ao fato de que essa tampa de assoalho, de madeira fina e resistente, quando colocada sobre os cavaletes, criava uma caixa de ressonância em associação com o madeirame do teto. Era uma acústica de caixa de violino.”

A excelência dessa acústica ficou mundialmente conhecida.

Os últimos espetáculos do circo, apresentados pela Companhia Chiarini, aconteceram em comemoração à vitória do Brasil na Guerra do Paraguai (Diário do Rio de Janeiro, 25 de março e 26 de abril de 1870).

Em 2 de fevereiro de 1871, o Theatro Dom Pedro II foi aberto com uma apresentação de exercícios equestres e gimnásticos da companhia de Bartholomeu, que se repetiu ao longo de fevereiro (Diário do Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1871, quinta coluna; 12 de fevereiro, quinta coluna, de 1871). Ainda no mesmo mês, foram realizados no salão da frente, logo antes da plateia, dois bailes de carnaval, em 19 e 21 de fevereiro, que marcaram a inauguração oficial do teatro (Jornal do Commercio, 12 de fevereiro, primeira coluna19 de fevereiro, última coluna, de 1871). O casal imperial não compareceu ao baile de abertura, mas às vésperas de sua realização suas majestades visitaram o teatro e elogiaram o prédio e sua decoração.

No seu livro, Memórias, o escritor português Raul Brandão (1867 – 1930) escreveu uma história contada a ele pelo caricaturista, escultor e ceramista português Rafael Bordalo Pinheiro (1846 – 1905), que morou alguns anos no Rio de Janeiro, durante o século XIX:

“O imperador do Brasil, logo que chegava ao theatro, mettia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo, uns chinelos. Uma noite o Raphael, que estava no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão pela cortina e robou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou: sahiu de chinelos, atravessou em chinelos a multidão, saudando para a direita, para esquerda, desceu até ao pateo e meteu-se, em chonelos, na carruagem”.

Terá sido verdade? Ou terá sido uma história inventada por Bordalo Pinheiro?

 

 

 

Com a presença de dom Pedro II e da imperariz Teresa Cristina (1822 – 1889), em 20 de junho de 1871, foi iniciada a primeira temporada lírica do Theatro D. Pedro com a apresentação da ópera Guilherme Tell, de Rossini, com os tenores Ballarini e Lelmi e a mezzo-soprano Amelia Escalante, dentre outros, sob a direção do maestro Ângelo Agostini, homônimo do famoso jornalista e ilustrador ítalo-brasileiro (Jornal do Commercio, 13 de junho de 1871). A programação da temporada da companhia italiana, com óperas de Ângelo Agostini (? -?), Carlos Gomes (1836 – 1896), Charles Gounod (1818 – 1893), Daniel Auber (1782 – 1871), Errico Petrella (1813 – 1877), Friedrich Flotow (1812 – 1883), Fromental Halevy (1799 – 1862), Giacomo Meyerbeer (1791 – 1864), Gioachino Rossini (1792 – 1868), Giovanni Pacini (1796 – 1867), Giuseppe Verdi (1813 – 1901) e Saverio Mercadante (1795-1870), foi publicada no Diário do Rio de Janeiro de 19 de março de 1871. Na mesma edição, em sua coluna “Revista do Domingo”, Luis Guimarães Jr. (1847 – 1898), um dos dez membros eleitos para se completar o quadro de fundadores da Academia Brasileira de Letras, comentou a vinda da Companhia Italiana ao Rio de Janeiro (Diário do Rio de Janeiro, 19 de março de 1871, sexta coluna). O teatro foi desde o início prestigiado pela elite já que o canto lírico representava o ápice da cultura europeia, da civilidade. Porém, Bartholomeu seguiu apresentando espetáculos para o grande público, garantindo a presença da cultura popular em seu teatro. Também cedia gratuitamente o Lyrico para a realização de festas beneficentes como as realizadas para as viúvas dos soldados da Guerra do Paraguai e para a Beneficência Portuguesa.

 

 

 

 

A décima segunda récita da temporada, em 18 de julho de 1871, homenageou o aniversário da sagração de dom Pedro II e contou com a  presença da princesa Isabel (1846 – 1921) e de seu marido, o conde D´Eu (1842 – 1922). Na ocasião, a princesa era a regente porque dom Pedro II estava, pela primeira vez, em viagem à Europa, para onde havia embarcado em 25 de maio de 1871. Em 31 de março de 1872, retornou ao Rio de Janeiro (Diário do Rio de Janeiro, 1º de abril de 1872), trazendo o duque de Saxe, viúvo de de sua filha Leopoldina, e seus dois netos, Pedro Augusto (1866 – 1934) e Augusto Leopoldo (1867 – 1922), que seriam educados no Brasil.

 

 

Em setembro de 1875,  o Theatro D. Pedro II passou a se chamar, por decreto, Imperial Theatro D. Pedro II (A Reforma, 7 de setembro de 1875, primeira colunaJornal do Commercio, 7 de setembro de 1875, primeira coluna).

 

imperial

 

Em 25 de março de 1876, véspera da partida do casal imperial para uma viagem aos Estados Unidos, foi realizado um espetáculo de gala no Imperial Theatro D. Pedro II. Na ocasião, o ator Francisco Xavier da Silva Lisboa recitou uma saudação de despedida aos imperadores (Diário do Rio de Janeiro, 27 de março de 1876, penúltima coluna).

Entre os anos de 1876 e 1886, o teatro foi administrado pelo maestro italiano Ângelo Ferrari (1835 – 1897) e conheceu uma fase áurea, com a apresentação de grandes óperas e dos maiores nomes do bel canto da época. Alguns dos espetáculos foram a Fosca, de Carlos Gomes (1836 – 1896), 1877 (Gazeta de Notícias, 25 de julho de 1877); Eurico, do maestro português Miguel Ãngelo Pereira (1843 – 1901), baseada no livro homônimo do poeta Alexandre Herculano (1810 – 1877), em 1878 (Revista Illustrada, 2 de novembro de 1878, terceira coluna); e Aída, de Giuseppe Verdi (1813 – 1901), em 1879 (Gazeta de Notícias, 15 de novembro de 1879, primeira coluna). Tenores famosos como o espanhol Julien Gayarre (1844 – 1890) (Gazeta de Notícias, 22 de outubro de 1876) e o italiano Francesco Tamagno (1850 – 1905) (Revista Musical, 15 de novembro de 1879, primeira coluna) apresentaram-se no teatro assim como as cantoras líricas Maria Durand (1846 – ?) (Gazeta de Notícias, 15 de novembro de 1879, primeira coluna) e Marianni (Diário do Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1878, terceira coluna). Em 1888, o ator francês da Comedie Française, Benoit Constant Coquelin (1841 – 1909), e a atriz francesa Jane Hading (1859 – 1941) foram os grandes sucessos (Diário de Notícias, 30 de maio de 1888, última coluna).

Foi por ocasião das comemorações do tricentenário do poeta Luis de Camões (1524-1580), organizadas pelo Real Gabinete de Leitura, que a peça de Machado de Assis (1839 – 1908), Tu, só tu, puro amor, estreou no Imperial Theatro D. Pedro II, em 10 de junho de 1880 (Gazeta de Notícias, 11 e 12 de junho de 1880, terceira coluna). Machado fez citações sobre o teatro em algumas de suas obras, como no livro Esaú e Jacó (1904) e em contos como  D. Jucunda (1889). Outros autores também o mencionaram: Lima Barreto (1881 – 1922) no conto Uma noite no Lírico, publicado em seu livro Histórias e Sonhos (1920); e Rubem Fonseca (1925 – 2020), em Agosto (1990), quando o personagem Emilio, o velho e doente professor de música do comissário Mattos, diz: “Nem Gigli nem Scotti põem mais os pés aqui…Não, não, minha cabeça não anda boa, o Scotti morreu há muito tempo, você não chegou a vê-lo, mas eu o vi, com esses olhos que a terra há de comer, cantando o Falstaff no Teatro Lírico, que eles demoliram, um teatro lindo com uma acústica melhor do que o Scala de Milão”. Antonio Scotti (1866 – 1936) foi um barítono italiano.

No dia 30 de junho de 1886, o maestro italiano Arturo Toscanini (1867 – 1957) regeu pela primeira vez uma orquestra, apresentando Aída, de Giuseppe Verdi (1813 – 1901), no Theatro Lyrico. Toscanini regeu a ópera de cor, sem partitura, e recebeu os maiores elogios do severo crítico Oscar Guanabarino (1851 – 1937).

 

Oscar Guanabarino / O Rio de Janeiro do meu tempo, de Luiz Edmundo

Oscar Guanabarino / O Rio de Janeiro do meu tempo, de Luiz Edmundo

 

 

Substituiu na última hora o maestro brasileiro Leopoldo Miguez (1850 – 1902), futuro autor do Hino da Proclamação da República, porque os artistas italianos não aceitaram a ideia de serem dirigidos por um estrangeiro. Miguez estava no lugar do regente italiano Claudio Rossi, que havia ficado doente (L´Italia, 1º de julho de 1886, última coluna; O Paiz, 1º de julho, quarta coluna 4 de julho, quarta coluna, 1886).

 

 

A cantora que fazia o papel de Aída, a russa Nadina Bulicioff (1858 – 1921), comprou a liberdade de sete escravizados com os presentes que recebeu de seus admiradores. Entregou as cartas de alforrias em pleno palco, em 10 de agosto, em um ato da campanha abolicionista organizado por José do Patrocínio (1854 – 1905) (O Paiz, 11 de agosto de 1886, sexta coluna).

 

 

A ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes (1836 – 1896), dedicada à princesa Isabel (1846 – 1921), estreou em 27 de setembro de 1889, sem a presença da família imperial, de luto devido à morte de dom Augusto de Portugal (1847 – 1889). Mas na récita do dia 2 de outubro, no intervalo da ópera, o compositor recebeu das mãos do imperador Pedro II a Ordem do Rosa (Diário de Notícias, 28 de setembro, quinta coluna3 de outubro de 1889, penúltima coluna).

Devido à proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o camarote real foi demontado, os símbolos do império foram eliminados e o Theatro Imperial Dom Pedro II passou a chamar-se Theatro Lyrico (O Paiz, 3 de dezembro de 1889, terceira coluna). Em janeiro do ano seguinte, uma reunião para a escolha do Hino da Proclamação da República aconteceu no teatro com a presença do presidente Deodoro da Fonseca (1827 – 1892). A música de Leopoldo Miguez, que concorreu com Alberto Nepomuceno (1864 – 1920), Francisco Braga (1868 – 1945), futuro compositor do Hino da Bandeira (1905); e Jerônimo Queiroz, foi a escolhida. O Hino Nacional permaneceria sendo o composto por Francisco Manoel da Silva (1795 – 1865) (O Paiz, 21 de janeiro de 1890, penúltima coluna; Jornal do Brasil, 31 de dezembro de 1933). Entre fevereiro e março, foram realizados no teatro dois bailes mascarados e uma reunião operária (O Paiz, 13 de fevereiro de 1890O Paiz, 17 de fevereiro de 1890O Paiz, 2 de março de 1890, primeira coluna).

Passou por uma reforma e foi reinaugurado em abril de 1890 com a apresentação da Grande e Luxuosa Companhia Equestre, acrobatica, gymnastica e comica do Polytheama Argentino de Buenos Aires, do empresário Luiz Gucci, representado por Alfredo Cattaneo (O Paiz, 23 de abril de 1890, primeira coluna).

 

 

Em 28 de março de 1895, Bartholomeu tomou posse definitiva do terreno do teatro.

 

Planta do Teatro Lírico

Planta geral do Teatro Lírico

 

O tango Tupã, uma homenagem da maestrina Chiquinha Gonzaga (1847 – 1935) ao jornalista e médico Lopes Trovão (1848-1925), autor da frase que se referia a ela: “Aquela Chiquinha é o diabo!”, foi executada pela Banda dos Meninos Desvalidos, regida por Luiz Moreira, em uma récita em benefício à compositora no Lyrico, em 20 de abril de 1891 (Gazeta de Notícias, 20 de abril de 1891, primeira coluna).

Vamos destacar na primeira década do século XX , a estreia no Rio de Janeiro, do Cinematographo Lumière Aperfeiçoado realizado pela empresa Evert, em 26 de novembro de 1904; a apresentação das atrizes de renome internacional Gabrielle Réjane (1856 – 1922), Sarah Bernhardt (1844 – 1923) e a italiana Eleonora Duse (1858 – 1924); e do tenor italiano Enrico Caruso (1873 – 1921). São nomes que se confundem com as artes nas quais atuaram.

 

 

Gabrielle Réjane esteve no Brasil três vezes. A primeira, em 1895. Em 1902, estreou no Lyrico na peça Zaza, escrita especialmente para ela por Pierre Berton (1842 – 1912) (Gazeta de Notícias, 1º de julho de 1903, última coluna). Fundou sua própria companhia teatral, em Paris, em 1906, e o escritor Marcel Proust (1871 – 1922) era seu grande amigo e admirador. Notabilizou-se por suas performances nas peças Madame Sans-Gêne, de Victorien Sardou (1831 – 1908); M Cousine, de Henri Meilhac (1830 – 1897), além da já citada Zaza. Apresentou-se no Theatro Municipal do Rio de Janeiro um dia depois de sua inauguração (O Paiz, 14 de julho, última coluna16 de julho, primeira coluna de 1909).

 

 

Identificado como célebre tenor, o italiano Enrico Caruso estreou no Lyrico, em 9 de setembro de 1903, na ópera Rigoletto (1851), de Giuseppe Verdi (1813 – 1901), que foi reapresentada em 18 de setembro. Também atuou em Manon Lescaut (1893) e na Tosca (1900), ambas de Giacomo Puccini (1858 – 1924); e em Iris (1898), de Pietro Mascagni (1863 – 1945) (Correio da Manhã,  8 de setembro, 18 de setembro, 19 de setembro e 25 de setembro de 1903; Jornal do Brasil, 26 de setembro de 1926, terceira coluna). Esteve de novo no Brasil, em 1917, quando se apresentou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

 

 

Sarah Bernhardt fez em julho de 1905 sua última turnê ao Rio de Janeiro. Já havia estado na cidade em 1886, quando se apresentou no Teatro São Pedro de Alcântara e sua atuação em Fedra, de Jean Racine (1639 – 1699) arrebatou a plateia; e, em 1893, quando suas performances aconteceram no Theatro Lyrico (Gazeta de Notícias, 10 de junho de 1893, última coluna). Foi também no Lyrico que se apresentou entre 13 e 17 de outubro de 1905, nas peças La Sorcière (1904), de Victorien Sardou (1831 – 1908); Adrienne Lecouvrier (1849), de Ernest Legouvé (1807 – 1903) e Eugène Scribe (1791 – 1861); A Dama das Camélias (1852), de Alexandre Dumas Filho (1824 – 1895); Angelo (1835)de Victor Hugo (1802 – 1885), e Hamlet (c. 1600)de William Shakespeare (1564 – 1616). Partiu do Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1905 (Gazeta de Notícias, 19 de outubro de 1905, quinta coluna).

 

 

Reza a lenda que ela teria se acidentado durante essa última turnê quando representava a peça A Tosca, de Sardou, cuja estreia foi estrelada por ela, em 27 de novembro de 1887, em Paris, tendo sido, em 1900, adaptada para a ópera homônima, por Giacomo Puccini (1858 – 1924). A queda teria ocasionado, posteriomente, a amputação da perna da atriz. Porém não há registro na imprensa de sua atuação na referida peça nessa sua última temporada carioca. Havia encenado A Tosca em sua turnê, no Rio de Janeiro, em 1893 (Gazeta de Notícias, 10 de junho , terceira coluna; 16 de junho, última coluna, de 1893).

 

 

Eleonora Duse ou La Duse, como era conhecida, foi uma verdadeira diva do teatro e destacou-se na interpretação de papéis escritos, muitas vezes, especialmente para ela pelo dramaturgo italiano Gabrielle D´Annunzio (1863 – 1938), com quem teve um romance; e de peças do norueguês Henrik Ibsen (1828 – 1906). Esteve no Rio de Janeiro, em 1885, quando se apresentou no Theatro São Pedro de Alcântara (Jornal do Commercio, 29 de junho de 1885, última coluna; A Semana, 17 de julho de 1885Diario do Brazil, 7 de agosto de 1885, primeira coluna), e entre junho e julho de 1907, em uma temporada no Lyrico. Após sua última performance, realizada em 16 de julho na peça Rosmersholm (1886), de Ibsen, foi homenageada e um escudo de mármore com a seguinte inscrição foi inaugurado:

 

 

Um fato curioso: foi no Lyrico, numa homenagem ao aviador Santos Dumont (1873 – 1932), que o jornalista e abolicionista José do Patrocínio (1854 – 1905), quando saudava o inventor, sofreu uma hemoptise durante seu discurso, tendo falecido pouco tempo depois, em 29 de janeiro de 1905 (Site Academia Brasileira de Letras).

Em 15 de setembro de 1911, houve um incêndio no edifício da Imprensa Nacional, vizinho ao teatro, o que suscitou boatos em torno da possível demolição do Lyrico. Um dos mais respeitados críticos de artes da época, o implacável Oscar Guanabarino (1851 – 1937), escreveu um artigo no qual se opunha veementemente a essa hipótese e chamava o Lyrico de melhor teatro dessa cidade (O Paiz, 16 de setembro, penúltima coluna; 7 de novembro, última coluna, de 1911).

 

 

O comendador Bartholomeu, título que recebeu  do rei dom Carlos de Portugal, faleceu em 27 de dezembro de 1917, e o Lyrico, após uma ruidosa disputa entre sua neta Margarida Chaves Lopes, pra quem deixouo teatro em testamento, e seus sobrinhos, foi herdado por ela, que era filha de Emilia (1859 – 1881), filha adotiva de Bartholomeu, e do jornalista Henrique Chaves (1849 – 1910), português e um dos fundadores da Gazeta de Notícias. Emilia havia morrido tragicamente, atingida por um coice de um cavalo, em novembro de 1881, no pátio que ficava na saída lateral do teatro. Margarida era casada com César Lopes Ferreira, com quem tinha dois filhos: João Henrique e Maria Emilia. Moravam no teatro assim como Batholomeu até sua morte (A Noite, 27 de dezembro de 1917, terceira coluna;  Gazeta de Notícias, 23 de maio de 1918, penúltima coluna).

Em 16 de fevereiro de 1919, foi realizado no Lyrico o primeiro concurso de músicas de carnaval. Os números foram executados pela Banda do Batalhão Naval e a vencedora foi o maxixe Prove e beba Vermutim, de Abdon Lyra (1887 – 1962) (Gazeta de Notícias, 17 de fevereiro de 1919, penúltima coluna).

 

 

O Lyrico também foi palco de eventos políticos. Destacamos aqui a convenção da campanha civilista, em agosto de 1909 (O Paiz23 de agosto, quinta coluna). 24 de agosto, segunda coluna, de 1909).

 

 

E também, em 20 de março de 1919, o evento no qual Ruy Barbosa (1879 – 1923), durante sua campanha presidencial, vencida, em 13 de abril, por seu concorrente, Epitácio Pessoa (1865 – 1942), leu a conferência A Questão Social e Política no Brasil, que se tornou famosa (O Imparcial, 21 de março de 1919, quarta coluna).

 

 

Trecho da conferência A Questão Social e Política no Brasil 

 O Brasil não é isso

“Mas, senhores, se é isso o que eles vêem, será isto, realmente, o que nós somos? Não seria o povo brasileiro mais do que esse espécimen do caboclo mal desasnado, que não se sabe ter de pé, nem mesmo se senta, conjunto de todos os estigmas de calaçaria e da estupidez, cujo voto se compre com um rolete de fumo, uma andaina de sarjão e uma vez d’aguardente? Não valerá realmente mais o povo brasileiro do que os conventilhos de advogados administrativos, as quadrilhas de corretores políticos e vendilhões parlamentares, por cujas mãos corre, barateada, a representação da sua soberania?

Deverão, com efeito, as outras nações, a cujo grande conselho comparecemos, medir o nosso valor pelo dessa troça de escaladores do poder, que o julgam ter conquistado, com a submissão de todos, porque, em um lance de roleta viciada, empalmaram a sorte e varreram a mesa?

Não. Não se engane o estrangeiro. Não nos enganemos nós mesmos. Não! O Brasil não é isso. Não! O Brasil não é o sócio de clube, de jogo e de pândega dos vivedores, que se apoderaram da sua fortuna, e o querem tratar como a libertinagem trata as companheiras momentâneas da sua luxúria.

Não! O Brasil não é esse ajuntamento coletício de criaturas taradas, sobre que possa correr, sem a menor impressão, o sopro das aspirações, que nesta hora agitam a humanidade toda.

Não! O Brasil não é essa nacionalidade fria, deliqüescente, cadaverizada, que receba na testa, sem estremecer, o carimbo de uma camarilha, como a messalina recebe no braço a tatuagem do amante, ou o calceta, no dorso, a flor-de-lis do verdugo.

Não! O Brasil não aceita a cova, que lhe estão cavando os cavadores do Tesouro, a cova onde o acabariam de roer até aos ossos os tatus-canastras da politicalha. Nada, nada disso é o Brasil”.

Seguiram-se apresentações de Guiomar Novaes (1895 – 1979) (O Paiz, 11 de setembro de 1920, terceira coluna) e de vários concertos de Arthur Rubinstein (1887 – 1982) (Correio da Manhã, 20 de maio de 1920, quinta coluna), em 1920; e, no ano do Centenário da Indenpendência do Brasil, em 1922, o grande sucesso foi a companhia francesa Ba-Ta-Clan, de Madame Rasimi (1874 – 1954) (O Paiz, 6 de agosto de 1922, penúltima coluna). Os Oitos Batutas, a seu convite, haviam apresentado no Theatro Lyrico o repertório dos shows que haviam realizado em Paris. “Não há dúvida nenhuma: mais uma vez os versos do trovador popular se justificam… ”A Europa continua a curvar-se ante o Brasil” (O Paiz, 23 de agosto de 1922, quinta coluna; e 27 de agosto, penúltima coluna, de 1922).

No ano seguinte, apresentaram-se no teatro o pianista russo Alexander Borovsky (1889 – 1968) (Correio da Manhã, 18 de maio de 1923, segunda coluna) e a cantora e atriz francesa Mistinguett (1873 – 1956) (Fon-Fon, 18 de agosto de 1923).

 

 

Em 1926, houve a apresentação da pianista Magdalena Tagliaferro (1893 – 1986) (Revista da Semana, 3 de julho de 1926, terceira coluna).

 

 

Filippo Tomazzo Marinetti (1876 – 1944), principal teórico e fundador do futurismo italiano, fez duas conferência do Lyrico, em 15 e 18 de maio de 1926, apresentado por Graça Aranha (1868 – 1931). Foi vaiado pelo público e diversas caricaturas dele foram publicadas pela imprensa carioca (Gazeta de Notícias, 16 de maio19 de maio de 1926; Fon-Fon, 12 de junho de 1926).

Em 15 de novembro, ainda em 1926, sob a direção do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959),  realização do espetáculo de gala Musica Typica Brasileira, com um coro de 200 vozes, em homenagem ao Governo da República (O Paiz, 14 de novembro de 1926).

 

 

Foi promovido no Lyrico, em janeiro de 1930, o concurso carnavalesco da Casa Edison, primeira empresa fonográfica do Brasil, fundada pelo tcheco Frederico (Fred) Figner (1866 – 1947), primeiro produtor fonográfico do Brasil. A música vencedora foi Dá nela, de Ary Barroso (1903 – 1964), seu primeiro grande sucesso e também o hit do carnaval de 1930. O cantor oficial do evento foi o popular Francisco Alves (1898 – 1952) e a orquestra era a Pan-Americana (O Malho, 25 de janeiro; 1º de fevereiro de 1930). No mesmo ano, a temporada lírica foi inaugurada pelo famoso pianista Alexandre Brailowsky (O Malho, 17 de maio de 1930).

 

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Ainda em 1930, a cantora Carmen Miranda (1909 – 1955) lotou o teatro. Na mesma noite, apresentaram-se os atores Procópio Ferreira (1898 – 1979), Raul Roulien (1904 – 2000) e o jornalista e poeta Álvaro Moreyra (1888 – 1964), dentre outros (A Noite, 20 de junho de 1930, terceira coluna).

 

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Fon-Fon, 14 de junho de 1930

 

Mas a crise financeira atingiu o Brasil, as instalações do Lyrico estavam velhas e muito dinheiro seria necessário para restaurá-lo. A última companhia que manteve um contrato com o teatro foi a A. Sonschein, de Cinematorgaphia, Theatros e Diversões. Em 23 de janeiro de 1932, a declamadora, atriz e cantora argentina, nascida na Bielorússia, Berta Singerman (1901 -1998), realizou seu 50º recital no Theatro Lyrico.

 

 

Em 29 de janeiro de 1932, houve no teatro o ensaio dos ranchos carnavalescos Flor do Abacate, Arrepiados e Deixa Falar (O Jornal, 31 de janeiro de 1932, quarta colunaDiário de Notícias, 3 de fevereiro de 1932, quarta coluna). Foi o último evento realizado no velho casarão da rua da Guarda. Estava marcado para o dia 31 de janeiro, um festival para a escolha do melhor samba e da melhor marchinha do carnaval de 1932, porém foi adiado devido a um problema de saúde da cantora Zaira Cavalcanti (1913-1981). Não há registro de que tenha sido realizado, pelo menos não no Lyrico (O Jornal, 30 de janeiro de 1932, segunda colunaCorreio da Manhã, 31 de janeiro de 1932, segunda colunaDiário de Notícias, 2 de fevereiro de 1932, segunda coluna).

O teatro, em 1932, foi a leilão público e adquirido pelo diretor presidente da Caixa Econômica Federal, Solano Carneiro da Cunha (O Jornal, 14 de setembro, quinta coluna;  29 de setembro, última coluna 29 de outubro, primeira coluna, de 1932). Na ocasião, segundo o livro Palco e Picadeiro – o Theatro Lyrico, o diretor do Instituto Nacional de Música, o professor Guilherme Fontainha (1887 – 1970), pediu a cessão das placas comemorativas que estavam no interior do Lyrico, que  foram então alocadas no Teatro João Caetano e na Escola Nacional de Música.

 

 

O prédio do teatro estava condenado por engenheiros e foi demolido entre 27 de dezembro de 1933 e 1934. Houve um desabamento durante sua demolição (Jornal do Brasil, 28 de dezembro de 193329 de dezembro de 1933, penúltima coluna6 de maio, quarta coluna20 de maio, quinta coluna19 de dezembro, quinta coluna, de 1934; O Paiz, 3 de janeiro, penúltima coluna3 de abril, penúltima coluna de 1934; O Jornal, 28 de janeiro de 1934).

 

 

Suas colunas de madeira foram vendidas aos irmãos e luthiers Benvenuto Pascole (1892 – 1956) e Guido Pascole (1905 – 1987), cuja fábrica de violinos ficava em São Paulo, e ao maestro Livolsi Bartholomeu. Foram utilizadas na fabricação desses instrumentos. O jornal A Noite promoveu um concurso para a entrega do violino fabricado com madeiras do Lyrico (A Noite, 2 de abril, 23 de abril10 de setembro17 de setembro, 22 de outubro e 15 de dezembro de 1934). Já no século XXI, o bombeiro e luthier Davi Lopes construiu instrumentos musicais com restos de madeira remanescentes do incêndio do Museu Nacional, ocorrido em 2 de setembro de 2018. Até agosto de 2021, Davi havia confeccionado com os destroços do museu dois violões, um bandolim, um cavaquinho e um violino, que seriam entregues ao Museu Nacional/UFRJ (Rota Cult, 27 de agosto de 2021).

 

 

Algumas das peças do  Lyrico foram a leilão e outras como, por exemplo, duas poltronas e um medalhão comemorativo da vista do presidente argentino, Julio Argentino Roca (1843 – 1914), ao Brasil, foram doadas ao Museu Histórico Nacional por Cesar Lopes, como já mencionado, marido de Margarida, a neta de Bartholomeu. No local do antigo teatro foi instalado um estacionamento (A Noite, 13 de novembro, quarta coluna).

 

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O Theatro Lyrico em artigos e crônicas

 

O Theatro Lyrico está presente em artigos e crônicas de dramaturgos, escritores, historiadores e políticos, dentre eles Coelho Neto (1864 – 1934), João do Rio (1881 – 1921), Oscar Lopes (1882 – 1938), cunhado da antiga proprietária, Margarida; e Ruy Barbosa (1849 – 1923).

 

 

“Foi condenado à morte o Lyrico. No dia em que os pedreiros entrarem com seus ferros a atacar o casarão que foi tudo nesta cidade, desde circo até praça de manifestações políticas, os que vêm do passado, se o coração se lhes não esterilizaram, sofrerão produndamente com a perda da antigualha, que foi o centro da elegância e a “ágora” em dias que se perderam na grande noite dos tempos…Abate-se o Lyrico, mas que não o substituam por alguma joça ridícula que em vez de tornar o sítio mais formoso, o enfeia e faça mais forte a saudade do velho theatro, indubitavelmente o melhor que possuímos, não só para os espetáculos lyricos, como para as representações dramáticas”.

Trecho do artigo O Lyrico, de Coelho Neto,

publicado no Jornal do Brasil, 18 de setembro de 1932

 

 

 

“Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti, de casaca, aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja…”

                                                                                            A alma encantadora das ruas (1908), de João do Rio

 

 

 

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Relíquia Perdida, de Oscar Lopes, publicado no Jornal do Brasil, em 6 de agosto de 1933

 

 

 

“…Mas aqui estamos num recinto consagrado à flor do espírito e da graça. Como uma corbelha imensa, em camadas superpostas de flores, sorri toda uma sociedade inumerável de rosas, de violetas, de carbúnculos, à luz quase meridiana da eletricidade…a música vai entronar sua magia naquela atmosfera de templo de beleza. Desse feitiço dizem que já se moveu as pedras, mas que, hoje mesmo, na decadência de seu poder, amansa feras, e ensinar a bailar as serpentes…Mas no santuário de Mozart, de Mayerbeer e de Wagner não estruja a vozeria, não chocalhe a pilhéria deslavada…”

 Trecho do artigo de Ruy Barbosa, O Direito da Vaia, publicado no jornal A Imprensa, do qual era diretor, em 17 de agosto de 1900, em torno da polêmica sobre a vaia iniciada devido às manifestações dos frequentadores do Lyrico

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2013.

EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro:Editora: Imprensa Nacional, 1938.

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

PERNY, Mônica Menezes. As máscaras de carnaval no cenário carioca: uma contribuição à Memória Social. 2015. 92f. Dissertação (Mestrado em Memória Social) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

SATIN, Ionara. Machado de Assis e I cantanti d’opera italiani: transferências culturais. Olho d’água, São José do Rio Preto, 10(2): p. 1–285, Jun.–Dez./2018.

Site Academia Brasileira de Letras

Site Acervo Digital Chiquinha Gonzaga

Site Panis & Circus – o site do circo

Site Teatros do Centro Histórico do Rio de Janeiro

VENCELAU, Maria da Gloria Leitão; SANDO, Rafael. The Pascoli Brothers: Violin Making and Immigration in 20th – Century Brazil, 2019.

VIEIRA, Francisco. Palco e Picadeiro – o Theatro Lyrico. Rio de Janeiro : 19 Design e Editora Ltda, 2015.

SAMPAIO, Daniel. Um circo lírico: conheça a história do Theatro Imperial Dom Pedro II. Veja Rio.

 

 

Links para os outros artigos da Série O Rio de Janeiro desaparecido

 

Série O Rio de Janeiro desaparecido I Salas de cinema do Rio de Janeiro do início do século XXde autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 26 de fevereiro de 2016.

Série O Rio de Janeiro desaparecido II – A Exposição Nacional de 1908 na Coleção Família Passos, de autoria de Carla Costa, historiadora do Museu da República, publicado na Brasiliana Fotográfica, em 5 de abril de 2018.

Série O Rio de Janeiro desaparecido III – O Palácio Monroe, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica, em 9 de novembro de 2016.

Série O Rio de Janeiro desaparecido IV - A via elevada da Perimetral, de autoria da historiadora Beatriz Kushnir, publicado na Brasiliana Fotográfica em 23 de junho de 2017.

Série O Rio de Janeiro desaparecido V – O quiosque Chopp Berrante no Passeio Público, Ferrez, Malta e Charles Dunlopde autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portalpublicado na Brasiliana Fotográfica em 20 de julho de 2018.

Série O Rio de Janeiro desaparecido VI – O primeiro Palácio da Prefeitura Municipal do Rio de Janeirode autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 12 de setembro de 2018.

Série O Rio de Janeiro desaparecido VII – O Morro de Santo Antônio na Casa de Oswaldo Cruzde autoria de historiador Ricardo Augusto dos Santos da Casa de Oswaldo Cruzpublicado na Brasiliana Fotográfica em 5 de fevereiro de 2019.

Série O Rio de Janeiro desaparecido VIII – A demolição do Morro do Castelode autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portalpublicado na Brasiliana Fotográfica em 30 de abril de 2019.

Série O Rio de Janeiro desaparecido IX – Estrada de Ferro Central do Brasil: estação e trilhosde autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 12 de novembro de 2019.

Série O Rio de Janeiro desaparecido X – No Dia dos Namorados, um pouco da história do Pavilhão Mourisco em Botafogode autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 12 de junho de 2020.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XI – A Estrada de Ferro do Corcovado e o mirante Chapéu de Sol, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 22 de julho de 2021.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XIII – O Convento da Ajuda, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 12 de outubro de 2021.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XIV – O Conselho Municipal, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 19 de novembro de 2021.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XV – A Praia de Santa Luzia no primeiro dia do verão, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 21 de dezembro de 2021.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XVI – O prédio da Academia Imperial de Belas Artes, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado na Brasiliana Fotográfica em 13 de janeiro de 2022.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XVII – Igreja São Pedro dos Clérigos, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 18 de março de 2022.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XVIII – A Praça Onze, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 20 de abril de 2022.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XIX – A Igrejinha de Copacabana, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 23 de junho de 2022.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XX – O Pavilhão dos Estados, futuro prédio do Ministério da Agricultura, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 26 de julho de 2022.

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXI – O Chafariz do Largo da Carioca, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 19 de setembro de 2022. 

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXII – A Cadeia Velha que deu lugar ao Palácio Tiradentes, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado na Brasiliana Fotográfica em 11 de abril de 2023

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXIII e Avenidas e ruas do Brasil XVII A Praia e a Rua do Russel, na Glória, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 15 de maio de 2023

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXIV – O luxuoso Palace Hotel, na Avenida Rio Branco, uma referência da vanguarda artística no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 4 de julho de 2023

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXV – O Theatro Phenix, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 5 de setembro de 2023

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXVI – Conclusão do arrasamento do Morro do Castelo por Augusto Malta, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 14 de dezembro de 2023

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXVII e Série Os arquitetos do Rio de Janeiro V – O Jockey Club e o Derby Club, na Avenida Rio Branco e o arquiteto Heitor de Mello (1875 – 1920), de autoria de Andrea c. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, em 15 de janeiro de 2024

 

Outros artigos publicados na Brasiliana Fotográfica sobre teatros e cinemas

 

Série O Rio de Janeiro desaparecido I Salas de cinema do Rio de Janeiro do início do século XXpublicado em 26 de fevereiro de 2016.

Os teatros do Brasil, publicado em 21 de março de 2016

A inauguração do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, publicado em 14 de julho de 2017

Cinema no Brasil – a primeira sessão e um pouco da história do Cinema Odeon, publicado em 8 de julho de 2021

O Theatro de Santa Isabel, publicado em 28 de outubro de 2021

O Teatro Amazonas (Theatro Amazonas), em Manaus, a “Paris dos Trópicos”, publicado em 28 de dezembro de 2021

O Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, no Dia Mundial do Teatro, publicado em 27 de março de 2023

Dia do Cinema Brasileiro, publicado em 19 de junho de 2023

Série O Rio de Janeiro desaparecido XXV – O Theatro Phenix, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado em 5 de setembro de 2023

O Theatro da Paz, em Belém do Pará, inaugurado em 15 de fevereiro de 1878, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicado em 15 de fevereiro de 2024

E a primeira-dama Nair de Teffé leva a música de Chiquinha Gonzaga para o Palácio do Catete, em 1914

Nair de Teffé e Chiquinha Gonzaga: duas mulheres à frente de seu tempo e a história do Corta-jaca no Palácio do Catete, em 1914

 

 

Em uma recepção oferecida no Palácio do Catete pelo presidente da República, o gaúcho Hermes da Fonseca (1855 – 1923), e pela primeira-dama, Nair de Teffé (1886 – 1981), em 26 de outubro de 1914, foi executado dentro da programação musical da elegante soirée o tango Gaúcho, mais conhecido como Corta-jaca, da revolucionária, transgressora e prodigiosa maestrina, a carioca e afrodescendente Chiquinha Gonzaga (1847 – 1935), cuja mãe era filha de uma escravizada alforriada e, o pai, um militar de família tradicional. Pela primeira vez esse estilo de música era apresentado nos salões chiques da capital da República, tendo como convidados o corpo diplomático e a elite carioca. A própria Nair de Teffé, uma mulher à frente de seu tempo, culta, talentosa, boêmia e festeira tocou a composição ao violão, instrumento ainda marginalizado na época.

 

 

De origem aristocrática, filha dos barões de Teffé, Nair foi uma pioneira. É considerada uma das primeiras mulheres caricaturistas do mundo, conhecida pelo pseudônimo Rian, e colaborava com publicações como Fon-Fon, Gazeta de Notícias e o Malho. Foi educada na França e falava seis idiomas. Era atriz e criou a Troupe Rian, que encenava peças teatrais para angariar fundos para a construção da Catedral de Petrópolis e também para beneficiar obras sociais. Casou-se com Hermes da Fonseca, em 8 de dezembro de 1913, após ele ficar viúvo, em novembro de 1912, de sua primeira esposa, Orsina da Fonseca (1858 – 1912) (Fon-Fon, 31 de julho de 1909Jornal do Brasil, 1º de dezembro de 1912; Jornal do Brasil, 9 de dezembro de 1913; O Malho, 13 de dezembro de 1913).

 

 

Acessando o link para as fotografias de Nair de Teffé e de Hermes da Fonseca disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

 

Voltando ao sarau…Ocorreu, como já mencionado, em 26 de outubro de 1914, menos de um mês antes da transmissão do cargo de presidente de Hermes da Fonseca para Venceslau Brás (1868 – 1966), em dia 15 de novembro de 1914. Grandes pianistas se apresentaram, dentre eles Arthur Napoleão (1843 – 1925), interpretando Les étincelles, de sua autoria; e Leopoldo Duque-Estrada (18? – 19?) com a Grande fantasia triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk (1829 – 1869). Mas foi a execução do Corta-jaca pela primeira-dama que marcou o evento. Finalmente uma música eminentemente popular era apresentada na sede do governo! (A Rua, 6 de novembro de 1914, primeira coluna).

 

 

 

Foi um escândalo e provocou reações na sociedade. O senador Rui Barbosa (1849 – 1923), que havia perdido a eleição presidencial para Hermes da Fonseca, em 1910, foi um dos que se manifestou contra o episódio, que ficou para a história como uma espécie de alforria da música popular brasileira.

 

 

A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!

Trecho do discurso proferido no Senado por Rui Barbosa

sobre o Corta-jaca no Catete, em 7 de novembro de 1914

 

 

Acessando o link para as fotografias de Chiquinha Gonzaga disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas. 

 

Gaúcho é um dos maiores sucessos de Chiquinha e integra a opereta burlesca Zizinha Maxixe, que estreou em 20 de agosto de 1895, no Teatro Éden Lavradio, no Rio de Janeiro, sob a direção da atriz Pepa Ruiz (1859 – 1923) (Gazeta de Notícias, 21 de agosto de 1895, terceira coluna).

 

 

Em um dos  manuscritos de Chiquinha, sob a guarda do Instituto Moreira Salles, pode-se ver o momento exato em que sua famosa música, segundo a escritora e biógrafa da maestrina, Edinha Diniz, camuflada de cateretê, dançada como maxixe e publicada como tango, nasceu. Ao final da partitura, a maestrina escreveu: “Arre!! São 3 e um quarto da manhã! Estou cansada, vou dormir… Felizmente acabei – os galos cantam”. Caiu nas graças do público, popularizando-se com o nome de Corta-jaca, intitulando, a partir daí, um gênero musical e apelidando, posteriormente, o governo do presidente Hermes da Fonseca (1910 a 1914).

 

 

A opereta não fez sucesso e só foi encenada três vezes (Jornal Illustrado, 31 de agosto de 1895, terceira coluna). Porém O Gaúcho foi editado em abril de 1899 sob o selo da Casa Vieira Machado, importante estabelecimento de publicação de partituras musicais, no Rio de Janeiro.

 

 

A música foi incluída na revista Cá e lá, de 1904 (O Paiz, 23 de junho de 1904, quarta coluna), e cantada pela população carioca em “chopps berrantes” por toda a cidade.

 

 

Devido ao sucesso, o tcheco Frederico (Fred) Figner (1866 – 1947), fundador da primeira empresa fonográfica do Brasil, a Casa Edison, e primeiro produtor fonográfico do país, gravou duas versões da canção em seu estúdio, na efervescente rua do Ouvidor, no centro da cidade.

 

 

O Corta-jaca tornou-se um clássico do grande repertório da música instrumental brasileira, merecendo gravações, entre outros, de Abel Ferreira, Altamiro Carrilho, Antonio Adolfo, Artur Moreira Lima, Clara Sverner, Conjunto Regional do Donga, Eudóxia de Barros, Guio de Morais, Itamar Assieré, Leandro Braga, Marcus Viana, Maria Teresa Madeira, Marcelo Verzoni, Paulo Moura, Radamés Gnatalli, Rosária Gatti, Talitha Peres, Turíbio Santos, inúmeras bandas e algumas versões cantadas (Site Chiquinha Gonzaga).

 

 

Ouça aqui o Gaúcho, composição de Chiquinha Gonzaga, conhecido como Corta-jaca, executado pela pianista Fernanda Canaud e pelo violonista Marco de Pinna, em 2014

 

 

Para saber mais sobre a vida e a obra da maestrina Chiquinha Gonzaga, acesse: https://ims.com.br/por-dentro-acervos/resgate-de-chiquinha-gonzaga/

 

Transcrição do artigo Chiquinha Gonzaga, de autoria do importante historiador da cultura brasileira, Mário de Andrade, publicado em O Estado de São Paulo, em 19 de fevereiro de 1940

CHIQUINHA GONZAGA 

Mario de Andrade

Na evolução da música popular urbana do Brasil teve grande importância o trabalho de uma mulher, já muito esquecida em nossos dias, Francisca Gonzaga. Esse esquecimento, aliás, é mais ou menos justificável, porque nada existe de mais transitório, em música, que esta espécie de composição. Compôr música de dansa, compôr música para revistas de anno e coisas assim é uma espécie de arte de consumo, tão necessária e tão consumível como o leite, os legumes, perfume e sapatos. O sapato gasta-se, o perfume se evola, o alimento é digerido. E o samba, o maxixe, a rumba, depois de cumprido o seu rápido destino de provocar várias e metaphoricas… calorias, é esquecido e substituído por outro. E como o artista só vive na função da obra que elle mesmo criou, o compositor de dansa, de canções de rádio, de revistas de anno, também é usado, gastado, e em seguida esquecido e substituído por outro.

Francisca Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga de todos os cariocas do fim da Monarquia, também foi algum tempo um daqueles “pianeiros” a que me referi num artigo anterior, tocadores de música de dansa nos assustados ou nas já desapparecidas salas-de-espera dos cinemas. Mas só o foi por pouco tempo, levada pelas suas necessidades econômicas. Logo reagiu e subiu, chegando mesmo a dirigir orchestra de theatro de operetas. Em 1885 no Theatro Lyrico, numa festa em sua homenagem, ella regeu a opereta “A filha do Guedes”, um dos seus maiores sucessos, de que ninguém se lembra mais. Foi a primeira regente mulher que já tivemos, prophetisadora, por muito tempo não seguida, das Dinorah de Carvalho e Joanidia Sodré dos nossos dias.

Mas esta foi apenas uma aventura a mais na vida desta mulher ativa, de existência fortemente movimentada. Nascida de família de militares, trazendo a têmpera dos Lima e Silva, aos treze annos Chiquinha Gonzaga casava-se com o marido que lhe impunham. Mas, como no verso de Alberto de Oliveira: “Não gostava de música o marido”. Depois de uma curta vida de casada, Chiquinha se revoltou, fugiu, foi viver independente no seu canto, repudiada por todos, parentes e amigos, que não podiam se conformar com aquella ofensa à moral pública. E a sua vida foi difficil, ella pobre, com filhos a criar, uma honestidade a defender sozinha na fatal obrigação de frequentar ambientes bohemios e moralmente flacidos. Foi professora de piano, constituiu um chôro para execução de dansas em casas de família, em que se fazia acompanhar do filhinho mais velho, tocador de cavaquinho, com dez anos de edade.

Conta Mariza Lyra, que recentemente evocou a vida de Chiquinha Gonzaga num livro muito útil, que naquelles tempos cariocas do Segundo Império, um processo commum de se vender música de dansa era mandar negros e escravos offerecer de porta em porta a mercadoria. Foi também assim que Chiquinha Gonzaga principiou a vender suas composições.

O seu primeiro grande sucesso foi a polka “Attrahente”, hoje uma preciosidade bibliographica raríssima; publicada pelo editor de música Narciso, já então associado, em sua casa commercial, a Arthur Napoleão e Leopoldo Miguez. A capa trazia o retrato de Chiquinha Gonzaga, desenhada por Bordalo Pinheiro. Peça brilhante, ainda pouco nacionalmente característica, não representa a verdadeira Chiquinha Gonzaga, que só oito anos mais tarde, em 1885, com a opereta “A corte na Roça”, se apresentava bem mais brasileira em sua invenção melódica.

Aliás, para se impôr como compositora de theatro, Chiquinha Gonzaga teve muito que lutar. Era mulher, e embora já celebrada nas suas peças de dansa, ninguém a imaginava com o folcgo sufficiente para uma peça theatral. Conseguiu arrancar um libreto de Arthur Azevedo, mas a sua partitura foi rejeitada. Compôs em seguida, sobre texto de sua própria autoria, uma “Festa de S. João”, que também não conseguiu ver executada. Só a terceira tentativa vingou – essa “Corte na Roça” que a Companhia Souza Bastos representou em janeiro de 1885.

Foi o sucesso, a celebridade mais alargada, e Francisca Gonzaga fixou-se como compositora de theatro leve, em que havia de continuar, por toda a sua vida activa. Ninguém está esquecido, imagino, de uma peça deliciosa que ainda hoje pode se sustentar, sem graves symptomas de velhice, a “Jurity”, com texto de Viriato Corrêa. Será talvez o que mais perdurável compoz Chiquinha Gonzaga. Aliás a combinação Chiquinha Gonzaga-Viriato Corrêa foi das mais felizes do nosso theatro popular.  Além da “Jurity”, “Maria e a Sertaneja” são das obras mais finas, no seu gênero, entre nós.

A invenção Chiquinha Gonzaga é discreta e raramente banal. Ella pertence a um tempo em que mesmo a composição popularesca, mesmo a música de dansa e das revistas de anno ainda não se degradaram cynicamente, procurando favorecer apenas os instinctos e sensualidades mais reles do público urbano, como hoje. Basta comparar uma canção, uma modinha, uma polka de Francisca Gonzaga corn a infinita maioria das canções dc rádio, os sambas, as marchinhas de Carnaval deste século, para reconhecer o que affirmo. Não se trata apenas de differenças condicionadas pelo tempo, conservando na differenciação o mesmo nível desavergonhadarnente baixo. Trata-se de um verdadeiro rebaixamento de nível, num interesse degradado em servir o público com o que lhe for mais fácil, mais immediatamente gostoso, para vencer mais rápido numa concorrência mais numerosa e brutal.

O interesse maior de Chiquinha Gonzaga está nisso: a sua música, assim como ela soube resvalar pela boemia carioca sem se tisnar, é agradavel, é simples sem attingir o banal, é fácil sem atingir a boçalidade. Os seus maiores succesos públicos, a “Lua Branca”, que ainda hoje cantam por ahi como modinha anonyma, a “Casa de Caboclo”, o lundu “P’ra Cera do Santissimo”, o famoso “Oh Abre Alas!” carnavalesco, e especialmente o “Corta-Jaca”, guardam na sua felicidade de invenção uma espécie de pudor, um recato melódico que não se presta nunca aos desmandos da sensualidade musical.

No livro de Mariza Lira, tão cheio de indicações históricas interessantes, vem aliás uma pequena inexactidão que convem rectificar. Foi costume entre nós, imprimir musicas de sentido político em lenços grandes, se não me engano trazidos ao pescoço. Informa Mariza Lira que “P’ra Cera do Santissimo” andou impressa em lenços de seda, tal a popularidade do lundu’. E adianta mais que um destes lenços esteve exposto na exposição de inconographia musical brasileira, realizada pelo Departamento de Cultura durante o Congresso da Língua Nacional Cantada. A inexactidão é que o lenço exposto, nessa occasião, não reproduzia a peça de Chiquinha Gonzaga, mas sim o “Chô Arauna”, e vinha provavelmente das últimas lutas ou primeiras celebrações do Treze de Maio.

Num outro passo do seu livro ainda, Mariza Lira dá como de acceitação definitiva a versão sobre a origem da palavra “maxixe”, para designar a nossa dansa urbana que antecedeu o samba carioca actual. Conta-se que essa designação derivou de um indivíduo que numa sociedade carnavalesca do Rio, chamada os Estudantes de Heidelberg, dansou de maneira tão especial e convidativa que todos começaram a imital-o. Esse indivíduo tinha o appelido de Maxixe; e como todos principiassem  a “dansar como o Maxixe”, em breve o nome do homem passou a designar a própria dansa. Ora, quem deu esta versão fui eu, que a ouvi do compositor Villa Lobos que por sua vez a teria ouvido de um velho, carnavalesco em seu tempo de mocidade, frequentador dos Estaudantes de Heldelberg e testemunha do facto. A versão é muito plausível, nada tem de extraordinária. Mas eu a dei com as devidas reservas, pois me parece que a coisa carece de maior confirmação. 

O que eu apenas fixei é que o maxixe, como dansa carioca, appareceu na década que vae de 1870 a 1880, e isso coincide de facto com a existência dos Estudantes de Heldelberg. Não conheço texto algum de 1870 em que a palavra apareça. Em 1880 ella ja principia frequentando regularmente as revistas e jornaes do Rio. Mas as minhas pesquisas pararam nisto, eu levado por outros interesses mais profundos.

O livro de Mariza Lira nos conta pela primeira vez vários passos interessantes da vida de Francisca Gonzaga. A autora do “Corta-Jaca” foi realmente uma mulher enérgica, cheia de iniciativas. Republicana apaixonada, tomou parte nas lutas de 1893, publicando músicas de sentido político. Chegou a ter ordem de prisão, por isso, as copias de sua cançoneta “Aperte o Botão” foram apprehendidas e inutilisadas. 

De outra feita, lhe doendo a sepultura miserável que guardava restos mortaes do autor do Hino Nacional, apesar de já nos seus 75 anos de idade, Chiquinha Gonzaga tomou a peito dar a Francisco Manuel morada mais digna. Serviu-se da Sociedade Brasileira de Autores Theatrais; lutou e conseguiu o seu intento. Na mocidade, discutindo com a pobreza, inventava as suas próprias vestes, em que havia sempre alguma originalidade lhe realçando a bonita carinha. Na cabeça, não podendo comprar os chapéus da moda, inventou trazer um toucado feito com um simples lenço de seda. Tão encantadora ficava assim e era tão diffícil de comprehender como arranjava o lenço, que uma vez, em plena rua do Ouvidor, uma senhora não se conteve, arrancou-lhe o lenço da cabeça, para descobrir o truque. Chiquinha indignada voltou-se e insultou a invejosa, chamando-lhe “Feia!”.

Francisca Gonzaga compôs 77 obras theatrais e tunas duas mil peças avulsas. Quem quizer conhecer a evolução das nossas dansas urbanas terá sempre que estudar muito attentamente as obras della. Vivendo no Segundo Império e nos primeiros decennios da República, Francisca Gonzaga teve contra si a phase musical muito ingrata em que compoz; phase de transicção, com suas habaneras, polkas, quadrilhas, tangos e maxixes, em que as características raciaes ainda lutam muito com os elementos de importação. E, ainda mais que Ernesto Nazaré, ella representa essa fase. A gente surprehende nas suas obras os elementos dessa luta como em nenhum outro compositor nacional. Parece que a sua fragilidade feminina captou com maior acceitação e também maior agudeza o sentido dos muitos caminhos em que se extraviava a nossa música de então.

 

 

A Brasililiana Fotográfica agradece a colaboração de Bia Paes Leme, coordenadora de Música do Instituto Moreira Salles, e a de Euler Gouvêa, músico e assistente da Coordenadoria de Música do Instituto Moreira Salles, para a publicação desse artigo.

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga, uma história de vida. São Paulo : Companhia das Letras, 2009.

FRANCESCHI, Humberto. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002.

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

NASCIMENTO, Rafael. Catete em ré menor: tensões da música na Primeira RepúblicaUniversidade Estadual de Campinas : Revista do Instituto de Estudos Brasileirosnúm. 672017. Instituto de Estudos Brasileiros.

PASCHOALOTTO, Ivanete; SIMILI, Ivana. Nair de Teffé: Uma narrativa biográfica para as mulheres dos séculos XIX e XX. Diálogos & Saberes, Mandaguari, 2011.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro ;  Jorge Zahar Editor, 2001.

Site Instituto Moreira Salles

Site Multirio

Site Musica Brasilis