Série “Avenidas e ruas do Brasil” XV – Misericórdia: rua, largo e ladeira, no Rio de Janeiro, por Cássio Loredano

Série Avenidas e ruas do Brasil  XV – Misericórdia, rua, largo e ladeira, no Rio de Janeiro, por Cássio Loredano

Na décima quinta publicação da série Avenidas e ruas do Brasil a Brasiliana Fotográfica traz para seus leitores o artigo Misericórdia: rua, largo e ladeira, escrito pelo caricaturista Cássio Loredano. É a terceira contribuição de Cássio no portal – já escreveu sobre a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro e sobre a Rua da Carioca.

 

 

Acessando o link para as imagens da rua da Misericórdia disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

Misericórdia: rua, largo e ladeira, no Rio de Janeiro

Cássio Loredano*

 

 

No Guia Rex de 1993, um dos últimos guias de ruas do Rio de Janeiro a serem impressos em papel, a Rua da Misericórdia ainda é apenas um trecho mínimo, de uns trinta metros, entre a lateral esquerda do Forum e o Largo da Misericórdia. Quem hoje a procure caminhará sobre a bonita restauração ajardinada da Praça do Expedicionário, ao fundo da qual – e muito próximo de onde esteve a velha rua – está o imponente obelisco-monumento ao Barão do Rio Branco. Fazia de fato pena ver o herói durante anos em vergonhoso estado de abandono na praça cercada de horrendos tabiques de lata amarrotados e emporcalhados.

 

 

A rua. (Esqueçamos régua e esquadro no traçado de ruas de cidades orgânicas.) A tirar do rabicho de rua do plano do guia um caminho mais ou menos direito rumo ao Paço Imperial, temos que chegaríamos, rasgando o prédio do Forum de fora a fora em diagonal, à esquina das atuais Rua Erasmo Braga e Avenida Presidente Antônio Carlos. Por ali cerca se dava o que Brasil Gerson, em sua História das Ruas do Rio, chama “o encontro” das ruas Direita e da Misericórdia. Esta, aberta para facilitar o acesso do cada vez mais importante centro administrativo e comercial da cidade a seu hospital, a Santa Casa da Misericórdia, na Praia de Santa Luzia, embrião da primeira faculdade de Medicina do Rio.

 

 

Da Misericórdia foi chamada por causa da Santa Casa e por passar, entre seu início no Paço e o hospital, pelo Largo da Misericórdia, com seu pequenino, lindo templo de Nossa Senhora do Bonsucesso, nos fundos da Santa Casa. E pelo início, aqui também à esquerda, da primeira rua da cidade, a Ladeira da Misericórdia.

 

Ladeira e Rua da Misericórdia / História das ruas do Rio por Brasil Gerson, página 13 da 6ª edição

Ladeira e Rua da Misericórdia, s/d. Rio de Janeiro, RJ / História das ruas do Rio, por Brasil Gerson, página 13 da 6ª edição

 

Este, a Ladeira, foi muito provavelmente o caminho que tomaram Natividade e Perpétua para subir ao Morro do Castelo na primeira cena de Esaú e Jacó, penúltimo romance de Machado de Assis.

“Era a primeira vez que as duas iam ao Morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiavame há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo. Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o Morro do  Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. “

O morro teve três ou quatro subidas. O escritor Gastão Cruls fala nessa quarta, uma Calçada da Sé, a partir do meio da Rua da Misericórdia, mas que nenhum outro historiador conhece e ela não está em nenhum dos mapas que às dezenas esquadrinharam aquele quadrilátero ao longo das décadas. Tais caminhos se fizeram necessários para dar à cidade que paulatinamente descia à várzea acesso ao que continuava no alto, a Catedral, que, com seu amplo adro de terra batida, atraía multidões para as grandes festas de São Sebastião, o Colégio dos Jesuítas, depois um quartel, um hospital militar e o observatório.

 

 

O que faz supor que foi a Misericórdia que Natividade tomou com a irmã para o morro é Machado indicar que as duas “começaram a subir pelo lado da Rua do Carmo“, isto é, o lado da velha ladeira. E terem deixado o coupé esperando-as meio escondido também daquele lado, no espaço entre a Igreja de São José e a Assembleia, de onde saiu para apanhá-las na esquina de São José com a Rua da Misericórdia e levá-las de volta a Botafogo.

E agora? Se já então constatava Machado que muito carioca nunca tinha estado no morro… E vaticinava, sem poder calcular o alcance do que dizia: “muita [gente] mais nascerá e morrerá sem lá por os pés.

Agora, só guiados pela magia de um Gastão Cruls, de um Brasil Gerson, um Noronha Santos, um Vieira Fazenda, um Lima Barreto, um João do Rio; ou pela magia dele próprio, o “Bruxo do Cosme Velho”, como Machado de Assis ficou conhecido.

 

 

 

 

* Cássio Loredano é jornalista e caricaturista. E, sobretudo, um apaixonado pelo Rio de Janeiro e suas histórias.

 

Links para as outras publicações da série “Avenidas e ruas do Brasil”

 Série “Avenidas e ruas do Brasil” I – Avenida Central, atual Rio Branco, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 7 de setembro de 2016

Série “Avenidas e ruas do Brasil” II – A Rua do Imperador em Petrópolis por Klumb, Leuzinger e Stahl, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 26 de junho de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” III – A Rua do Bom Jesus, no Recife, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 6 de agosto de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IV – A Rua 25 de Março, em São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 1º de setembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” V – A Rua Direita, a Rua das Mercês e a Rua Macau do Meio, em Diamantina, Minas Gerais, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 22 de outubro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VI  – Rua Augusto Ribas e outras, em Ponta Grossa, no Paraná, pelo fotógrafo Luiz Bianchi, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 16 de novembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VII – A Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 23 de dezembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil VIII – A Rua da Carioca por Cássio Loredano, de autoria de Cássio Loredano, publicada em 20 de janeiro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IX – Ruas e panoramas do bairro do Catete, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de julho de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” X – A Rua da Ajuda, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 9 de novembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XI – A Rua da Esperança, em São Paulo, por Vincenzo Pastore, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de dezembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XII – A Avenida Paulista, o coração pulsante da metrópole, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 21 de janeiro de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIII – A Rua Buenos Aires no Centro do Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 19 de julho de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIV – A Avenida Presidente Vargas,, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 31 de agosto de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVI – “Alguma coisa acontece no meu coração”, a Avenida São João nos 469 anos de São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 25 de janeiro de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVII  e série “O Rio de Janeiro desaparecido” XXIII – A Praia e a Rua do Russel, na Glória, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 15 de maio de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVIII – Avenida Beira-Mar, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 22 de janeiro de 2024

 

 

 

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIV – A Avenida Presidente Vargas

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIV – A Avenida Presidente Vargas

O tema do 14º artigo da Série Avenidas e ruas do Brasil é a Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio de Janeiro. Foram selecionadas 19 fotografias da avenida em si e também de lugares que existiam antes de sua inauguração, na década de 40. São imagens produzidas por Alfredo Krausz (? – 19?), Antônio Caetano da Costa Ribeiro (18? – 19?), Augusto Malta (1864 – 1957), Guilherme Santos (1871 – 1966), Marc Ferrez (1843 – 1923), Revert Henrique Klumb (c. 1826 – c. 1886) e Uriel Malta (1910 – 1994). As mais antigas são da década de 1860, foram realizadas por Klumb e retratam o então Canal do Aterrado, o Canal do Mangue.

A avenida Presidente Vargas liga o Largo da Candelária à Praça da Bandeira e tem quatro quilômetros de extensão e 80 metros de largura. É lá que acontecem as festas de 7 de setembro. Também já foi palco de manifestações populares que fazem parte da história do Brasil como a do movimento pelas Diretas Já.

 

 

Acessando o link para as fotografias da Avenida Presidente Vargas disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá visualizar e magnificar as imagens.

 

 

Logo no início da década de 40, durante o Estado Novo, o então presidente Getulio Vargas (1882 – 1954) decidiu construir a Avenida Presidente Vargas e, pelo projeto, um trecho do Campo de Santana, partes da Praça Onze, além de ruas inteiras, como a General Câmara, a São Pedro, a Senador Eusébio e a Visconde de Itaúna teriam que ser destruídos (O Malho, dezembro de 1941). Começaram as demolições. Inúmeras famílias foram desalojadas, mais de 500 prédios foram derrubados, dentre eles a antiga sede da prefeitura, e algumas igrejas como a Igreja de São Pedro dos Clérigos, que já foram temas de artigos da série O Rio de Janeiro desaparecido. As igrejas do Bom Jesus do Calvário, de Nossa Senhora da Conceição e a Capela de São Domingos também foram demolidas. No traçado original, nem a Candelária resistiria, mas desistiram de demoli-la e construíram a Praça Pio XI para harmonizá-la com a nova avenida.

 

 

O segundo trecho da nova avenida foi concluído em 10 de novembro de 1942; e, em 10 de novembro de 1943, foi batizada de Presidente Vargas. Finalmente, em 7 de setembro de 1944, foi inaugurada. A obra foi realizada durante a gestão dom prefeito Henrique Dodsworth (1895 – 1975) em apenas três anos (O Malhodezembro de 1942abril de 1943dezembro de 1943O País, 10 de novembro de 1943Jornal do Brasil, 8 de setembro de 1944).

 

 

 

 

Segundo o site MultiRio:

“Muito embora a Presidente Vargas tenha cumprido, de imediato, o seu papel de corredor de transportes, dotando o Centro de melhor infraestrutura rodoviária, o crescimento imobiliário da via não cumpriu o roteiro programado, à exceção do trecho próximo à Avenida Rio Branco. Aos poucos, os empreendimentos se estenderam até o Campo de Santana, tornando-se, a partir daí, cada vez mais rarefeitos, fato que contribuiu para a decadência de toda a região da Cidade Nova.

Segundo informações do Instituto Pereira Passos, a renovação dessa área só começou a acontecer na década de 1970, quando várias instituições públicas passaram a construir grandes prédios para ali se instalarem, a exemplo dos Correios, do Arquivo Público Nacional, do Centro Administrativo São Sebastião, do Centro de Convenções. O fato é que o espírito da cultura negra permanece mais vivo do que nunca no trecho da Avenida Presidente Vargas onde existia a antiga Praça Onze. É ali que fica o Monumento a Zumbi, o Terreirão do Samba, a armação do desfile das maiores escolas de samba da cidade”.

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

BORDE, Andrea de Lacerda Pessôa. Avenida Presidente Vargas: narrativas históricas. Revista do Arquivo Geral do Rio de Janeiro, nº 10, 2016.

BUENO, Eduardo e TAITELBAUM, Paula. Avenida Presidente Vargas: um desfile pela história do Brasil. Rio de Janeiro: Arco, 2010.

Diário do Rio

GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2013.

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

O GLOBO, 6 de setembro de 2019

Site MultiRio

 

Links para as outras publicações da série “Avenidas e ruas do Brasil”

 Série “Avenidas e ruas do Brasil” I – Avenida Central, atual Rio Branco, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 7 de setembro de 2016

Série “Avenidas e ruas do Brasil” II – A Rua do Imperador em Petrópolis por Klumb, Leuzinger e Stahl, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 26 de junho de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” III – A Rua do Bom Jesus, no Recife, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 6 de agosto de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IV – A Rua 25 de Março, em São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 1º de setembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” V – A Rua Direita, a Rua das Mercês e a Rua Macau do Meio, em Diamantina, Minas Gerais, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 22 de outubro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VI  – Rua Augusto Ribas e outras, em Ponta Grossa, no Paraná, pelo fotógrafo Luiz Bianchi, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 16 de novembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VII – A Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 23 de dezembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil VIII – A Rua da Carioca por Cássio Loredano, de autoria de Cássio Loredano, publicada em 20 de janeiro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IX – Ruas e panoramas do bairro do Catete, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de julho de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” X – A Rua da Ajuda, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 9 de novembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XI – A Rua da Esperança, em São Paulo, por Vincenzo Pastore, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de dezembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XII – A Avenida Paulista, o coração pulsante da metrópole, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 21 de janeiro de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIII – A Rua Buenos Aires no Centro do Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 19 de julho de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XV – Misericórdia: rua, largo e ladeira, no Rio de Janeiro, por Cássio Loredano, de autoria de Cássio Loredano, publicada em 8 de dezembro de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVI – “Alguma coisa acontece no meu coração”, a Avenida São João nos 469 anos de São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 25 de janeiro de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVII  e série “O Rio de Janeiro desaparecido” XXIII – A Praia e a Rua do Russel, na Glória, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 15 de maio de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVIII – Avenida Beira-Mar, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 22 de janeiro de 2024

 

 

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIII – A Rua Buenos Aires no Rio de Janeiro

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIII – A Rua Buenos Aires no Rio de Janeiro

No 13º artigo da Série Avenidas e ruas do Brasil, a Brasiliana Fotográfica destaca a Rua Buenos Aires, antiga Rua do Hospício, no Centro do Rio de Janeiro. Os registros são de Augusto Malta (1864 – 1957), alagoano que foi o fotógrafo oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro, entre 1903 e 1936, e de um fotógrafo ainda não identificado. Malta foi contratado pelo prefeito Pereira Passos (1836 – 1913) para documentar a radical mudança urbanística promovida por ele, período que ficou conhecido como o “bota-abaixo” e que contribuiu fortemente para o surgimento do Rio de Janeiro da Belle Époque.

 

Acessando o link para as fotografias da rua Buenos Aires disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

A Rua Buenos Aires liga o Campo de Santana à rua 1º de Março e fica na região conhecida como Saara, caracterizada pela forte presença de lojas especializadas em artigos populares. Lembramos a nossos leitores que a utilização da ferramenta zoom possibilita a exploração mais aproximada de aspectos interessantes das fotografias. Por exemplo, na imagem abaixo, realizada por um fotógrafo ainda não identificado, que registrou a Rua Buenos Aires na direção da Avenida Passos, podem ser observados mais detalhadamente seu antigo casario, os pedestres, as fachadas das lojas e um bonde em seus trilhos.

 

 

No século XVIII, a Rua Buenos Aires era chamada de Rua Detrás do Hospício, apesar de não ter existido um hospício nela: a parte de trás da antiga Igreja do Hospício, localizada na Rua do Rosário, que tinha uma capela e um albergue, dava para a Buenos Aires. Conforme lembrado por Brasil Gerson (1904 – 1981), no livro História das Ruas do Rio: No português antigo, hospício era o mesmo que albergue e hospital. Ainda, segundo o mesmo autor, antes de ficar conhecida como Rua do Hospício, alguns de seus trechos tiveram outras denominações como Rua da Portuguesa, certamente por causa da portuguesa Margarida Soares, que nela morava quando ela não ia além do caminho para o Morro da Conceição; Rua do Sebastião Ferrão, que foi provavelmente um tabelião; Rua do Teixeira, que nela explorava uma casa de jogo de truque; Rua do Becão, famoso cirurgião da Santa Casa; e Rua do Alecrim.

Passou a chamar-se Rua Buenos Aires, em 1915, durante a gestão do prefeiro Rivadávia da Cunha Correia (1866- 1920) (A Noite, 16 de novembro de 1915, quarta coluna; A Rua, 23 de novembro, segunda coluna).

Abrigou alguns estabelecimentos importantes da cidade como, por volta de 1860, a empresa Mesquita e Moreira, de matérias fecais, que antes da instalação do serviço de esgoto no Rio de Janeiro recolhia os urinóis caseiros e jogava sua carga no mar; a redação do jornal O Jacobino, a primeira sede do Clube Ginástico Português, a companhia Mútua de Seguros de Vida de Escravos, em 1862; em 1880, o Grêmio dos Professores; e, em 1905, a Liga Metropolitana de Futebol. Já na década de 1930, tornou-se uma Ra cheia de sedes de jornais: lá estavam instalados, no quarteirão entre o Mercado das Flores e a Rua Uruguaiana, A Manhã, O Popular e  A Tarde.

 

 

O registro abaixo, do Mercado das Flores, na Rua Buenos Aires, foi produzido por Malta. Foi inaugurado em 17 de abril de 1910 com a presença do então prefeito da cidade, Serzedelo Correia (1858 – 1932) e de Julio Furtado (1851 -1934), diretor das Matas e Jardins. Agora já pode o estrangeiro ir a um mercado de flores decente e digno de uma capital como a nossa (Correio da Manhã, 18 de abril de 1910, última coluna). Porém a construção não agradou a todos (Gazeta de Notícias, 18 de abril de 1910, segunda coluna). Foi o caso da escritora Julia Lopes de Almeida (1862 – 1934), que publicou uma crítica no jornal O Paiz, de 10 de maio de 1910. O Mercado das Flores, além de ser um polo de referência no comércio de flores, foi um ponto turístico da cidade, devido à exuberância de seus arranjos florais.

 

 

A Rua Buenos Aires, que ainda se chamava Rua do Hospício, foi mencionada na crônica Vinte Anos! Vinte Anos!, de Machado de Assis (1839 – 1908).

“…Depois de dizer o diabo do correspondente, de fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos…Eram os vinte anos que irrompiam cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes de chegar à Rua de Uruguaiana, alguém chamou por ele.”

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

Diário do Rio

GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2013.

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

 

Links para as outras publicações da série “Avenidas e ruas do Brasil”

 Série “Avenidas e ruas do Brasil” I – Avenida Central, atual Rio Branco, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 7 de setembro de 2016

Série “Avenidas e ruas do Brasil” II – A Rua do Imperador em Petrópolis por Klumb, Leuzinger e Stahl, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 26 de junho de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” III – A Rua do Bom Jesus, no Recife, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 6 de agosto de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IV – A Rua 25 de Março, em São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 1º de setembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” V – A Rua Direita, a Rua das Mercês e a Rua Macau do Meio, em Diamantina, Minas Gerais, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 22 de outubro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VI  – Rua Augusto Ribas e outras, em Ponta Grossa, no Paraná, pelo fotógrafo Luiz Bianchi, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 16 de novembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VII – A Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 23 de dezembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil VIII – A Rua da Carioca por Cássio Loredano, de autoria de Cássio Loredano, publicada em 20 de janeiro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IX – Ruas e panoramas do bairro do Catete, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de julho de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” X – A Rua da Ajuda, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 9 de novembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XI – A Rua da Esperança, em São Paulo, por Vincenzo Pastore, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de dezembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XII – A Avenida Paulista, o coração pulsante da metrópole, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 21 de janeiro de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIV – A Avenida Presidente Vargas,, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 31 de agosto de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XV – Misericórdia: rua, largo e ladeira, no Rio de Janeiro, por Cássio Loredano, de autoria de Cássio Loredano, publicada em 8 de dezembro de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVI – “Alguma coisa acontece no meu coração”, a Avenida São João nos 469 anos de São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 25 de janeiro de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVII  e série “O Rio de Janeiro desaparecido” XXIII – A Praia e a Rua do Russel, na Glória, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 15 de maio de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVIII – Avenida Beira-Mar, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 22 de janeiro de 2024

 

 

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VIII – A Rua da Carioca por Cássio Loredano

A Brasiliana Fotográfica celebra o Dia de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, com a publicação do oitavo artigo da série “Avenidas e ruas do Brasil”. É o jornalista e caricaturista Cássio Loredano que nos conta a história de uma das ruas mais antigas e representativas da cidade, a Rua da Carioca, no Centro, que traz no seu nome, desde 1848, por deliberação da Câmara Municipal da Corte, a denominação daqueles que nascem na cidade (Diário do Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1848, terceira coluna). Mas já foi, há séculos, chamada de Caminho do Egito e Rua do Piolho.

Acessando o link para as fotografias do largo e da Rua da Carioca disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.  

 

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VIII – A rua da Carioca por Cássio Loredano

Cássio Loredano*

 

 

Degredar foi em Portugal, desde o século XVI, uma das penas impostas a quem tinha contas a ajustar com a lei. E foi disso que se lembraram por lá quando, no início do Setecentos, pretenderam se ver livres de uma gente incômoda que em toda a Europa e ao longo de séculos era alvo de ondas recorrentes de antipatia, segregação, preconceitos e perseguições, – os ciganos: mandar para o Brasil. E no Rio de Janeiro, como eram “intocáveis”, em grego
athígganos, isto é, que não queriam e, mais do que não quererem, eram proibidos de contato com cristãos, foram armar suas barracas fora dos estreitos limites municipais de então: lá para os lados do Rocio grande, na época Campo da Cidade, e numa rua que a partir dele se formou e se chamou Rua dos Ciganos. O próprio campo passou a ser então também chamado dos Ciganos.

 

 

Que são as atuais Rua da Constituição e praça Tiradentes. O acesso a esse campo se dava pelo que é hoje a Rua da Carioca e era um tortuoso “caminho que pelo areal passa pelo pé do outeiro de São Francisco (Santo Antônio)”.

 

 

Essa hesitação na toponímia se deve a que Santo Antônio de Lisboa era franciscano. Saiu a pé para a Itália, onde ingressou nessa ordem, se fez doutor e lecionou Teologia em Bolonha. Foi canonizado como Santo Antônio de Pádua, cidade em que morreu. Era soldado honorário do exército português e, quando o Rio foi atacado em 1710 por um pirata francês, Jean-François Duclerc, tiveram a ideia de tirar sua imagem do frontão da igreja e colocá-la em cima do muro do convento para inspirar os defensores da cidade. A isso atribuído o êxito da campanha, promoveu-se o santo a tenente-coronel e lhe outorgaram a grã-cruz da Ordem Militar de Cristo. Quando, um ano depois, outro pirata, René Duguay-Trouin, veio vingar Duclerc, que tinha morrido no Rio, não houve santo que evitasse a nódoa que ficou no brasão da cidade.

 

 

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Em 1967, dois anos depois o do 4º centenário da, com nódoa ou sem nódoa, “mui heróica e leal” São Sebastião do Rio de Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, IHGB, publicou um preciosíssimo Atlas da evolução urbana da cidade, de Eduardo Canabrava Barreiros. São vinte e duas pranchas em que nos passa sob o olhar tudo o que houve com o plano municipal ao longo de quatrocentos anos: abertura de caminhos, ruas e praças, desmontes de morros, aterros de lagoas, charcos e perfis litorâneos, etc.

 

atlas

 

A prancha 10 do atlas, que  tem por base uma planta de 1713, de José Massé, ensina que aquele “caminho do areal” passara a se chamar Caminho do Egito. Em sua História das ruas do Rio, Brasil Gerson levanta a possibilidade de ter havido em algum ponto do caminho um oratório com a imagem da fuga de Maria, José e o Menino para o Egito para escapar ao infanticídio decretado por Herodes. Muito mais plausível, embora não se conheça documento que o comprove, é que se chamasse do Egito por conduzir ao campo dos Ciganos, como está no último romance da pentalogia carioca de Alberto Mussa, A biblioteca elementar, de 2018.

 

 

Em algumas línguas, português, italiano, alemão, manteve-se a palavra grega que Bizâncio usou, athígganos, como derivação para cigano, zíngaro, Zigeuner (tsigóiner). Esses nômades originários da Índia tinham entrado na Europa com as invasões mongóis do século XIII e subido até a Boêmia pelo vale do Danúbio. Outro itinerário de entrada teria sido via Egito, e isso diziam os próprios ciganos, o que originou as palavras por que foram chamados em outras línguas. Em castelhano, gitanos, de egiptanos. Em francês, além do empréstimo tomado ao castelhano, gitans, também égyptiens ou bohémiens, dependendo de se tinham chegado pelo Mediterrâneo ou descido pelo continente, – e Victor Hugo pode numa mesma página de Notre-Dame de Paris chamar sua Esmeralda de bohémienne ou égyptienne. Em inglês, simplesmente gypsys ou gipsys.

Ora, os degredados do campo dos Ciganos diziam que tinham entrado na Europa passando pelo Egito e é mais plausível que por isso a rua tenha se chamado assim do que pelo oratório imaginado por Brasil Gerson.

 

 

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Tom Jobim dizia que o Brasil não é para principiantes. Aqui, prostitutas se apaixonam e traficantes se viciam. E cigano se fixa, cigano se estabelece. E o mesmo Brasil Gerson nos conta como alguns deles ganharam dinheiro com o negócio negreiro no Valongo e deixaram seus acampamentos para vir morar dentro dos limites da cidade. Na Rua do Piolho, como tinha passado a se chamar o caminho do Egito, segundo o mapa de André Vaz Figueira, de 1750, base para a prancha 12 do atlas de Canabrava Barreiros.

“Piolho” era como a vizinhança chamava um solicitador da época, cujo nome a história esqueceu, apelido que se dava a gente que como ele vivia escarafunchando arquivos e cartórios em busca de questões de que pudesse tirar proveito. “Piolho das roupas”, “piolho em costura”. Algo como hoje muquirana (aliás o nome do piolho em tupi), parasita, sanguessuga.

 

 

No começo, o caminho do Egito só tinha casas do lado direito de quem vai para o campo. Do lado esquerdo, só havia uma cerca que separava da cidade os domínios dos franciscanos. Mas quando a ordem terceira de São Francisco da Penitência construiu seu hospital no sopé do morro, detrás dele ficou aberto o espaço em que se fizeram as casas do lado esquerdo e a Rua do Piolho passou a tê-las dos dois lados. O “Piolho” tinha na rua a casa em que morava e mais três que alugava.

Na Planta Régia mandada fazer em 1808 pela casa real que chegara ao Brasil naquele ano, a rua ainda se chama do Piolho, mas o campo é da Lampadosa, por causa da igreja dessa virgem que havia (e há) na Rua do Sacramento, atual Avenida Passos. Nessa igreja o Tiradentes teve licença de ouvir uma missa antes de ser  levado ao patíbulo que estava para ele armado no centro do campo.

 

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Em 1723, tinha sido mandada aterrar uma lagoa, às vezes só charco, emanação de miasma e criadouro de mosquitos que havia embaixo, defronte ao convento de Santo Antônio (como se vê no mapa acima, diante do convento assinalado pelo quadrado preto). Naquele espaço se construiu o primeiro chafariz “da Carioca”. De suas 16 bicas despejava a água que os velhos arcos construídos pelo governador Aires Saldanha traziam da nascente do rio Carioca pelos altos de Santa Teresa. Depois, Gomes Freire, também governador, mandou subir o maravilhoso monumento que são os Arcos da Lapa, com o idêntico propósito de vencer o vale entre os morros de Santa Teresa e Santo Antônio, trazendo a água para um novo, enorme chafariz de agora 35 torneiras. E largo da Carioca passou a se chamar o espaço do antigo viveiro pestilento aterrado. (Como “da Carioca” se chamara lá atrás o caminho que levava até a foz do rio Carioca, na atual praia do Flamengo, onde se fazia a aguada, o reabastecimento de água doce a bordo das embarcações que estavam fundeadas na baía. Quando a Rua do Cano, atual Sete de Setembro, e o chafariz do Mestre Valentim puxaram a água até o largo do Paço, a aguada dos marinheiros passou a se fazer com muito maior comodidade, no cais Pharoux.)

 

 

A Rua do Piolho, que ganhou a importância de ser o acesso de quem morava lá fora à água do chafariz, passou com o tempo a ser também chamada  de Rua da Carioca, como consta na planta Garnier, de 1859, prancha 16 do atlas do IHGB. Nela, o campo da Lampadosa tinha mudado de novo de nome, praça da Constituição. Sempre se disse que o novo nome comemorava a primeira constituição do Brasil independente, de 1824. Brasil Gerson avança, porém, a informação de que isto foi porque na praça, dia 26 de fevereiro de 1821 – e apenas dois meses antes de seu embarque de volta a Portugal, a 25 de abril – d. João VI jurou “as bases da futura Constituição a ser votada pelas Cortes de Lisboa”. A República rebatizou outra vez o velho campo: praça Tiradentes.

No começo do século XX, a administração Pereira Passos tornou o velho caminho uma rua reta, alargou-a, arborizou-a e a tornou importante eixo de ligação centro-norte da cidade, com suas “colegas” lá na frente, Visconde do Rio Branco, Frei Caneca, Salvador e Estácio de Sá, Haddock Lobo e por ali adiante. Depois, ganharam a concorrência brutal da Presidente Vargas. A rua manteve um charme que foi devagar se degradando e entrou na depressão que agora está atravessando e que se comunica a seus frequentadores mais antigos.

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Em 1862, instalou-se no centro da então praça da Constituição o primeiro e possivelmente o mais belo bronze da cidade, a estátua equestre de Pedro I, esculpida e fundida em Paris nas oficinas de Louis Rochet. O imperador está brandindo um calhamaço que seria a constituição de 1824, origem da tal confusão que se criou com a afirmação de Brasil Gerson.

 

 

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2020

Da praça que emoldura o monumento, três quartos das portas estão arriados, a maioria – por causa da pandemia – definitivamente. Na face entre a Rua da Carioca e a Visconde do Rio Branco estão os dois hotéis da esquina da rua Silva Jardim: o decadente e o moderno da cadeia Ibis. Há depois uma loja de ferragens e “sebo” mais nenhum. O Teatro Carlos Gomes está obviamente fechado e o quartel da polícia foi abandonado. Do lado onde funcionou o lendário dancing Estudantina Musical, estão o palacete do visconde do Rio Seco, imponente e restaurado, e seu vizinho moderno, ambos abrigando agora o Centro de Referência do Artesanato Brasileiro. Depois, só mais a tradicional loja Tic-tac, sapataria nos três sentidos: indústria, comércio e reparo de sapatos e consertos gerais. O resto, até a Rua da Constituição, é deprimente, doze portas de aço fechadas, enferrujando.

Dessa Rua da Constituição, há quatro anos, saem, passam pela praça e se enfiam pela Rua Sete de Setembro os trilhos da linha 2 do VLT, tetrassílabo tolo, quando se tem bonde, delicioso brasileirismo quase monossilábico. Desse lado da praça, funciona um pequeno supermercado. A casa onde morou a cantora Bidu Sayão foi restaurada e abandonada. Na esquina da Rua da Imperatriz há um café e restaurante novo, bastante simpático. Na pequena quadra dali até a Avenida Passos funcionou no século XIX a tipografia e editora do grande Francisco de Paula Brito, aliás nascido na Rua do Piolho, primeiro empregador de um certo Quincas, jovem revisor, por extenso Joaquim Maria Machado de Assis. Hoje ali não há mais nada e o outrora imponente casarão da esquina da avenida é uma perigosa ruína. O Teatro João Caetano está também sem função. Na face entre a Rua do Teatro e a da Carioca existe uma caixa de fósforos estreita e comprida, de 31 andares, isolada e horrorosa, o Edifício Centro Paulista. Fora isso, mais nada. Uma filial da Adega do Pimenta, de Santa Teresa, está fechada.

Entremos então pela Rua da Carioca. Mais ou menos metade das portas também está fechada. Do tradicional polo de lojas de instrumentos musicais ainda resistem oito, mas não mais nem A Guitarra de Prata, nem O Bandolim de Ouro. Das de malas ainda existem quatro. De guarda-chuvas, uma só e só uma de chapéus de sol e cadeiras de praia.

Do lado esquerdo de quem está indo para o Largo da Carioca, está a metade do que foi a fachada do Cinema Ideal, com sua marquise de vidro sustentada por belo artesanato de ferro art déco. A sala tinha o luxo de um teto retrátil para noites limpas de verão. A seguir, chega-se a uma simpaticíssima servidão de passagem para a Rua Sete de Setembro, Rua do Verde, inteiramente dedicada a comércios de plantas; e uma filial do paraíso, a loja do Palácio das Ferramentas. Na esquina de Ramalho Ortigão existiu muito tempo um lindo armazém do tipo da Casa Paladino, na Rua Uruguaiana, ou o do Senado na Gomes Freire e o Gomes de Santa Teresa. Pé-direito altíssimo, mobiliário até o teto em madeira escura entalhada e portas de cristal, balcões, prateleiras e gôndolas com milhares de garrafas de toda aguardente imaginável, compotas, rapaduras envoltas em folhas de bananeira secas ou palha de milho. Bar Flora. Agora na esquina, no espaço de um terço do que era, está um bar com graça zero, tudo de fórmica, em que  pessoas engolem de pé e depressa uma fritura massuda qualquer com qualquer refresco para ajudar a descer.

No sobrado do nº 38 – magnificamente restaurado, deixando à mostra por dentro a antiga alvenaria de pedra e argamassa à base de óleo de baleia -, funcionava até a pandemia e reabrirá depois dela a Casa do Choro, iniciativa de Luciana Rabello, reduto da melhor música instrumental da cidade.

Mas atravessemos a rua. No pequeno edifício estreito do nº 59, ocupou um andar a última redação do Pasquim, em que, praticamente sozinhos, Jaguar e Reinaldo “casseta” levaram o barco até o fim. O segundo andar do 53 foi o lendário restaurante Zicartola. Os donos, Cartola e sua mulher Zica, a chefe da cozinha, moravam no andar de cima. O local tinha um espaço em que se apresentava a nata do universo do samba carioca – e onde Hermínio Bello de Carvalho concebeu o espetáculo Rosa de Ouro, de 1965. O Zicartola foi o primeiro palco de Paulinho da Viola.

Seguindo: Cinema Iris. Em 1973, o patrimônio fechou, para restaurar sua arquitetura eclética e a bela escadaria de ferro que leva ao balcão, a sala que exibia filmes pornô, – mas em que o mais picante não se passava na tela. Na reinauguração, houve uma concorridíssima festa, com público nada a ver com o que habitualmente frequentava suas poltronas. Cinema mudo a noite toda, animado pela orquestra de Nicolino Coppia, o maestro Copinha. Dali, saiu todo mundo para o Bar Luiz. No dia seguinte, o Iris já tinha voltado à velha batida. Esteve fechado desde março por causa da pandemia, mas reabriu agora em setembro. “O melhor do Rio em filmes eróticos” é o orgulhoso aviso que recebe o público: “três filmes pornô” por 20 módicos reais.

 

 

O Bar Luiz, antes de vir para a Rua da Carioca, 39, fora na Rua da Assembleia, de um alemão chamado Wendling. Quando se mudou, veio como Adolf, Bar Adolf. Óbvio, na guerra foi obrigado a mudar. Passava por ter o melhor chope da cidade, mesmo quando a cozinha já não era mais nada do outro mundo. Até que alguns anos atrás um novo dono tivesse a infeliz ideia de tirar a chopeira da Brahma e botar a da cervejaria Sol. Pronto: debandada geral. Ninguém mais ia lá – e agora, ainda por cima, veio a pandemia. O bar foi reaberto com menos mesas, mas as mesmas toalhas imaculadas dando destaque às belas cadeiras pretas tipo austríacas. O chope voltou a ser Brahma. Mas o estrago que se conseguiu num dia pode levar anos para ser reparado, – se é que será possível reparar.

Desse lado impar, do Bar Luiz até o Largo da Carioca, há ainda uma loja de roupas masculinas, outra de artigos esportivos, uma sapataria e as lojas de artigos de praia e malas, mas não mais a Mala Carioca, a Mala Inglesa ou A Mala Amada. E uma loja maluca, O Rei das Facas, cutelaria que é também armeiro – espadas decorativas, lanças, fuzis, pistolas, munição -, loja de ferramentas e ferragens, aqueles velhos moedores de carne caseiros, manuais, panelas de ferro, máquinas também manuais de esticar massa de pastel,  penicos de ágate etc.

Entre esses poucos negócios, tudo portas de aço arriadas.

E assim chegamos ao Largo da Carioca, presidido pelo Convento e a Igreja de Santo Antônio e a da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência – pequenina preciosidade inteiramente forrada de ouro -, no alto do pouco que restou do Morro de Santo Antônio.

 

 

Na área que foi desmontada, abriu-se a “esplanada das estatais”, Petrobrás, BNDES, BNH. No centro do largo continua o velho relógio, que ficou anos parado e recentemente voltou a funcionar. No subsolo, a estação Carioca do metrô, cuja obra demoliu a loja de discos Palermo, que aparece no filme Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade: Mané consultando as bancadas de LPs. Lá no fundo, o edifício do Liceu Português, na esquina de Senador Dantas, e à esquerda, na de Bitencourt da Silva, os fundos da Caixa Econômica e do premiado edifício modernista de Henrique Mindlin, o Avenida Central.

 

Largo da Carioca, por Cássio Loredano

Largo da Carioca, por Cássio Loredano, 2015 / Acervo IMS

 

Uma banca de jornais vende mapas e painéis de anatomia daqueles de antigas salas de aula. De vez em quando aparece um vendedor de panaceias em garrafadas, um sujeito com cobras, engolidores de fogo. Um homenzinho de Bíblia em punho anuncia para a indiferença geral o final dos tempos.

 

* Cássio Loredano é jornalista e caricaturista. E, sobretudo, um apaixonado pelo Rio de Janeiro e suas histórias.

 

Links para as outras publicações da série “Avenidas e ruas do Brasil”

 Série “Avenidas e ruas do Brasil” I – Avenida Central, atual Rio Branco, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 7 de setembro de 2016

Série “Avenidas e ruas do Brasil” II – A Rua do Imperador em Petrópolis por Klumb, Leuzinger e Stahl, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 26 de junho de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” III – A Rua do Bom Jesus, no Recife, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 6 de agosto de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IV – A Rua 25 de Março, em São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 1º de setembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” V – A Rua Direita, a Rua das Mercês e a Rua Macau do Meio, em Diamantina, Minas Gerais, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 22 de outubro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VI  – Rua Augusto Ribas e outras, em Ponta Grossa, no Paraná, pelo fotógrafo Luiz Bianchi, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 16 de novembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” VII – A Avenida Atlântica, em Copacabana, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 23 de dezembro de 2020

Série “Avenidas e ruas do Brasil” IX – Ruas e panoramas do bairro do Catete, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de julho de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” X – A Rua da Ajuda, no Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 9 de novembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XI – A Rua da Esperança, em São Paulo, por Vincenzo Pastore, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 14 de dezembro de 2021

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XII – A Avenida Paulista, o coração pulsante da metrópole, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 21 de janeiro de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIII – A Rua Buenos Aires no Centro do Rio de Janeiro, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal,  publicada em 19 de julho de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XIV – A Avenida Presidente Vargas,, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 31 de agosto de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XV – Misericórdia: rua, largo e ladeira, no Rio de Janeiro, por Cássio Loredano, de autoria de Cássio Loredano, publicada em 8 de dezembro de 2022

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVI – “Alguma coisa acontece no meu coração”, a Avenida São João nos 469 anos de São Paulo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 25 de janeiro de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVII  e série “O Rio de Janeiro desaparecido” XXIII – A Praia e a Rua do Russel, na Glória, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 15 de maio de 2023

Série “Avenidas e ruas do Brasil” XVIII – Avenida Beira-Mar, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, editora e pesquisadora do portal, publicada em 22 de janeiro de 2024

 

 

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Link para a Proposta Pedagógica: território e imagem, realizada pela equipe educativa do IMS-RJ sob inspiração da plataforma interativa ImagineRio, que ilustra a partir de fotografias, ilustrações e mapas as transformações sociais e urbanas da cidade do Rio de Janeiro.