A cidade como Arquivo, o Arquivo da Cidade

Seguindo a diretriz das Ordenações Manuelinas (1512-1603), manifestação da vontade do rei de Portugal, dom Manuel I (1469-1521) de homogeneizar e controlar a administração do crescente Império Português, firmou-se no Rio de Janeiro  uma “arca grande e boa” para a guarda dos documentos públicos, que deram origem ao acervo em depósito no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), uma das instituições parceiras da Brasiliana Fotográfica. É essa história, escrita pela diretora da AGCRJ, Beatriz Kushnir, que o portal publica hoje em homenagem aos 454 anos da fundação do Rio de Janeiro, instituída por Estácio de Sá (1520 – 1567) em um terreno plano entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar.

 

A cidade como Arquivo, o Arquivo da Cidade

Beatriz Kushnir*

 

Somos uma cidade que nasceu lusa. A República se esforçou para apagar os traços de nossa tradição ibérica e teve algum êxito. Mas a forma como nos relacionamos com a burocracia, esta é portuguesa. Aprendemos com eles a circularidade das informações, com cópias, autenticações, três vias, etc.

No processo de expansão ultramarino, a implementação da imprensa permitiu que das manuscritas Ordenações Afonsinas, a lei tipograficamente formatada alcançasse os quatro cantos do Reino na compilação conhecida como Ordenações Manuelinas (1512-1603). Incluso no modus vivendi desta revisão legislativa, há a vontade do rei D. Manuel I (1469-1521), que assumiu a Coroa aos 26 anos, de homogeneizar e controlar a administração do crescente Império Português.

Acessando o link para as fotografias relacionadas a essa publicação e disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

Certamente, a letra impressa permitiu a divulgação e assegurou o conhecimento da legislação. E pela compilação das normas no regulamento, a tentativa de unificação do território. D. Manuel I, o nosso 1º governante, instituiu esse corpo legislativo, que aqui conheceu efetiva vigência no primeiro século das Terras de Santa Cruz. Embora as Ordenações Manuelinas tenham sido revogadas pelas Filipinas, em 1603, acabaram perdurando no tempo. Grande parte de seu conteúdo estava incluso na legislação subsequente e inúmeras de suas disposições continuaram em vigor. Tais normas atravessaram a Independência do Brasil, o 2º Império e a República. Mais de três séculos depois é que o Código Civil de 1917 foi promulgado.

Refletir sobre as Ordenações é mapear o processo de estabelecimento do direito português, monárquico e centralizador, onde a Corte era tida como a “última instância de recurso” no Reino e o Rei, a “última instância de justiça”. O primeiro livro das Ordenações Manuelinas, editado em dezembro de 1512, abarcava os regimentos, os cargos e as atribuições da administração judiciária. É nele que se arrolam as categorias de chanceleres-mor, desembargadores, corregedores, ouvidores, meirinhos, porteiros, carcereiros, entre outros. Há igualmente, as cláusulas quanto a administração e as pontuações quanto aos deveres dos vereadores, almotacés, alcaides, tabeliães. De tal modo, se define e alicerça a máquina administrativa e burocrática do Estado.
No Título 46, “Dos Vereadores das Cidades, Villas, e cousas que a seus Officios pertencem”, se lê no item II que os vereadores farão guardar em uma arca grande e boa, todos os Forais, Tombos, Privilégios e quaisquer outra Escritura que pertençam ao Conselho. Esta área terá duas fechaduras, das quais uma chave terá o Escrivão da Câmara e outra, um dos vereadores. Assim, D. Manuel designou que em todo e qualquer espaço de povoamento do Império Ultramarino fosse instituído um lugar de guarda dos documentos públicos, um arquivo. Não esqueceu igualmente, de regrar pela segurança das informações ali contidas e sabia que sem estas, direitos e deveres não seriam resguardados em uma sociedade escravocrata e pouco letrada.

Quando Estácio de Sá, sobrinho do Governador Geral do Brasil (1557-72), Mem de Sá, desembarcou em Salvador, Bahia, em 1563, tinha como missão fundar uma cidade nas terras da Guanabara e expulsar os franceses que aqui estavam. A família Sá era de fidalgos do Rei. Mem de Sá licenciou-se em Direito e serviu à Coroa por 39 anos. Foi o 1º jurista nomeado para um governo no além-mar e o garantidor dos interesses do Estado português no Brasil. Tendo em mãos as Ordenações Manuelinas, o apoio da Companhia de Jesus e o poder da guerra, investiu na unidade politico-administrativa, no povoamento e na produção de riqueza.

 

 

Em 1º de março de 1565, a Muy leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi instituída por Estácio de Sá em um terreno plano entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar. Neste acampamento militar estavam as bases para a luta que expulsaria os franceses dois anos depois, em 20 de janeiro de 1567. Num desenho tipicamente fantástico, Estácio de Sá foi flechado e morreu, tal e qual o santo que nomeia a cidade e que tem naquela data o seu dia.

 

 

O Governador Geral, ao desfazer o cenário da guerra, deslocou os assentamentos que demarcavam a fundação da cidade para o morro do Castelo, no interior da baía da Guanabara. E ali ergueu uma sólida fortaleza. O Rio de Janeiro, por seu lugar estratégico no âmbito geográfico e político, desde o inicio foi instituído como uma urbe.

 

 

Seguindo a diretriz Manuelinas, aqui também se firmou uma “arca grande e boa” para a guarda dos documentos públicos. Origem do acervo em deposito atualmente no Arquivo Geral da Cidade do RJ (AGCRJ), há no conjunto documental da Câmara Municipal e posteriormente, do Senado da Câmara, o Códice “Legislativo Municipal – Correição dos Ouvidores”.

Inscrito na nota de abertura do livro, toma-se ciência que este tomo é uma “cópia do Livro das Provisões e Correição do ano de 1624 até 1747”. Tal duplicidade foi autorizada pela Vereança em janeiro de 1807. Isto porque, o original achava-se bastante danificado. O manuscrito tem às folhas 23, a inscrição:

“Mil seiscentos e trinta e oito = Correição feita pelo Ouvidor Geral Diogo de Sá da Rocha = Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e trinta e oito anos, aos três dias do mês de Março nesta Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, veio a esta Câmara o Ouvidor Geral Diogo de Sá da Rocha em Correição segundo o costume de que fiz este termo, Diogo Lopes Ramos, Escrivão da Correição, e Ouvidoria Geral desta República, digo, desta Repartição do Sul, que o escrevi”.

No verso da folha, compreende-se que o Ouvidor Geral Diogo de Sá da Rocha vem se certificar da inclusão dos Livros de Registros e das Cartas no Arquivo da Câmara. Da mesma forma, cuidou para que quando se entregassem as chaves do Arquivo e cofres da Câmara, as mesmas se fizesse com a segurança de um registro a quem se entrega. Isto porque,
“para se saber as pessoas que as tem as ditas Chaves; não fiarão os Oficiais um dos outros isto, com pena de cinquenta cruzados aplicados para as obras do Concelho, em que os há por condenados todas as vezes que o contrário fizerem, e o Escrivão será obrigado a notificar aos Oficiais presentes, e ao que ao diante forem este Capítulo”.

Abaixo a reprodução das folhas 23 e 24  do Códice “Legislativo Municipal – Correição dos Ouvidores”, “cópia do Livro das Provisões e Correição do ano de 1624 até 1747” **

documento 1

documento 2

 

No ano de 1638, mesmo sob a regência das Ordenações Filipinas, o controle apontado por D. Manuel garantiu que estes subsídios e muitos outros, chegassem até nós e sublinhassem a instituição desta cidade, neste 1º de março, registrada nos detalhes da segurança aos dados públicos.

 

 

*Beatriz Kushnir é  a Diretora-Geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

**Acervo AGCRJ, fundo Câmara Municipal, Série: Legislativo Municipal. Códice: BR RJAGCRJ.CM.LGM.16.4.10, Folha 23V.