À mesa, os pioneiros da ciência brasileira

A fotografia destacada pela jornalista Cristiane d´Avila, da Fiocruz, uma das instituições parceiras do portal, representa bem mais do que o registro de um momento de descontração de pesquisadores, na Casa de Chá, em Manguinhos, em torno de 1908. Ali estava parte do grupo que alçaria o Instituto Oswaldo Cruz a ícone da medicina experimental no Brasil. A participação no Congresso Internacional de Higiene e Demografia realizado em Berlim, em 1907, onde o país foi laureado com medalha de ouro, deu condições para que uma instituição científica de estado, dedicada à pesquisa e ao ensino, se perpetuasse e fizesse de um sonho a concretização de seu projeto original, pautado até o presente na valorização da vida.

 

À mesa, os pioneiros da ciência brasileira

Cristiane d´Avila*

 

 

Pausa para a foto e o café. Pequenas mesas dispostas em semicírculo rondam a figueira, fincada na área central do caramanchão. À mesa, talvez o mesmo cardápio das refeições de alguns anos antes, quando o almoço era servido em um barracão: “galinha ensopada com batatas, arroz, pão”[1]. No primeiro plano, o químico alemão Gustav Giemsa (1867 – 1948) e o médico Henrique Aragão (1879 – 1956) posam ao lado do garçom, anônimo, de pé; no segundo, o protozoologista e também alemão Stanislas Von Prowazek (1875 – 1915) conversa com Oswaldo Cruz (1872 – 1917), a câmera como testemunha do suposto diálogo entre ambos.

A fotografia do almoço na bucólica casa de chá (inaugurada em 1905 e, desde então, instalada no campus da Fiocruz em Manguinhos) data de 1908. Naquele ano, os dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo receberam autorização do governo alemão para uma visita técnica ao Instituto Oswaldo Cruz, por seis meses. Realizada às expensas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), incluía bolsa de dois mil marcos por mês, para cada um, e passagens. Objetivos: ministrar cursos sobre suas especialidades aos profissionais do IOC e publicar em primeira mão, na recém-lançada revista científica Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, os resultados das pesquisas realizadas durante o intercâmbio no instituto.

A visita dos cientistas alemães foi impulsionada pela participação do Instituto de Patologia Experimental (denominação anterior do IOC)[2] no Congresso Internacional de Higiene e Demografia realizado em Berlim, em 1907. Único representante da América do Sul no evento, o Brasil ocupou três salas de exposições: uma dedicada à profilaxia da febre amarela, fruto da bem-sucedida campanha de Oswaldo Cruz no combate à doença no Rio, em 1904; outra, a estatísticas demográfico-sanitárias da cidade, então capital do país; e a terceira a projetos, fotografias dos prédios projetados para o campus de Manguinhos e produtos biológicos fabricados no instituto.

Os estrangeiros ficaram impressionados com a coleção de insetos e os materiais representativos das doenças tropicais exibidas pelos cientistas brasileiros, principalmente as peças ilustrando as lesões provocadas pela febre amarela e a peste bubônica. “A participação do país no congresso internacional se dava, sobretudo, aos vínculos que Oswaldo Cruz criara com os mais importantes institutos europeus de medicina experimental. Tais relações tornaram Manguinhos mais conhecido na Europa que no Brasil”, explica o historiador Jaime Benchimol no livro Manguinhos do sonho à vida.

Até então, segundo Benchimol, o IOC contava com parcos recursos e com quadro de pessoal que se resumia ao diretor, Oswaldo Cruz, a dois bacteriologistas e a dois estudantes, além de pesquisadores voluntários. Com o sucesso da campanha de Berlim, o IOC recebeu novo regulamento e arcabouço institucional, ganhando maior autonomia orçamentária e administrativa.

Foi justamente esse profícuo intercâmbio que levou, em 1908, os professores de Hamburgo a Manguinhos. “Os trunfos colhidos em Berlim e a nova realidade institucional de Manguinhos permitiram a Oswaldo Cruz incorporar novos pesquisadores e deslanchar uma política de intercâmbio com os institutos estrangeiros, visando ao aperfeiçoamento de seu quadro de cientistas e ao amadurecimento de suas linhas de pesquisa”, continua Benchimol na detalhada obra sobre a história da Fiocruz e mesmo da própria ciência no país.

O intercâmbio com centros de pesquisa internacionais como Instituto Pasteur, Museu Britânico, Instituto de Higiene de Heidelberg e de Moléstias Infecciosas de Berlim, escolas de Medicina Tropical de Hamburgo, Londres e Liverpool, etc., foi fundamental nesse processo de enfrentamento de resistências ao investimento em ciência e à autonomia do IOC. Igual relevância teve o papel dos pesquisadores e de suas inúmeras investigações, que levaram ao desenvolvimento de produtos biológicos de uso veterinário e humano. “A pauta industrial de Manguinhos evoluiu de 11 produtos em 1907 para 26 em 1918, entre soros, vacinas e outras substâncias biológicas para fins terapêuticos, para diagnóstico ou utilizados como matéria-prima em processos laboratoriais”[3].

A fotografia, portanto, representa mais do que o registro de um momento de descontração, após a refeição dos pesquisadores, na bucólica Casa de Chá. Ali estava parte do grupo que alçaria o Instituto Oswaldo Cruz (assim nomeado a partir de 1908) a ícone da medicina experimental no Brasil. De certa forma, a participação no congresso em Berlim, onde o Brasil foi laureado com medalha de ouro, deu condições, ao longo dos anos, para que uma instituição científica de estado dedicada à pesquisa e ao ensino pudesse trilhar caminhos que a permitiram fazer de um sonho, seu objetivo maior: a valorização da vida.

[1] ARAGÃO apud FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 1947.

[2] A Fundação Oswaldo Cruz foi inaugurada em 1900 como Instituto Soroterápico Federal, passou a Instituto de Patologia Experimental e, a partir de 1908, ganhou o nome do patrono.

[3] Benchimol, 2020, p. 84

 

*Cristiane d´Avila é jornalista do Departamento de Arquivo e Documentação Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Fontes:

BENCHIMOL, Jaime Larry (coord.). Manguinhos do sonho à vida: a ciência na Belle Époque. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2020.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. CASA DE OSWALDO CRUZ. Resumo histórico da fundação do Instituto Soroterápico Federal, hoje Instituto Oswaldo Cruz. Coletânea organizada pelo arquivista Albino Taveira. Rio de Janeiro, COC, 1947.

 

 

alemães

Os cientistas Gustav Giemsa (1867 – 1948) e Stanislas Von Prowazek (1875 – 1915) / Wikipedia e Fiocruz

 

  

Um pensamento sobre “À mesa, os pioneiros da ciência brasileira

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <strike> <strong>