O centenário da morte de Rui Barbosa, que passou à história como a “Águia de Haia”

“O direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais maldefendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos”.

Trecho de Oração aos Moços, de Rui Barbosa*

 

Com duas imagens realizadas por fotógrafos ainda não identificados, a Brasiliana Fotográfica lembra o centenário da morte do baiano Rui Barbosa (1849 – 1923), abolicionista e um dos artífices da República brasileira, figura ilustre de nossa história (O Paiz2 de março e 3 de março de 1923). Uma das fotos, produzida em torno de 1918, o retrata ao lado do engenheiro Paulo de Frontin (1860 – 1933), diante de um navio, no Porto do Rio de Janeiro. A outra mostra seu cortejo fúnebre, realizado em 3 de março de 1923. Ambas pertencem ao acervo fotográfico do Instituto Moreira Salles, uma das instituições fundadoras do portal.

 

 

 

 

O advogado, jurista e político Rui Barbosa nasceu em 5 de novembro de 1849, em Salvador, e faleceu em Petrópolis, em 1º de março de 1923. Foi um dos mais proeminentes intelectuais de seu tempo, tendo se destacado também como diplomata, escritor, jornalista, orador e tradutor. Foi um abolicionista atuante, tendo colaborado, assim como o também baiano Luis Gama (1830 – 1882), no periódico Radical Paulistano, em 1869 (Radical Paulistano, 19 de agosto de 1869, primeira coluna). Foi um dos autores da Constituição da Primeira República, de 1891, mas, por denunciar o autoritarismo de Floriano Peixoto (1839 – 1895) e apoiar a Revolta da Armada, exilou-se, em 1893, em Buenos Aires, da onde partiru para Lisboa, Madri, Paris e finalmente Londres. Retornou ao Brasil em 1895. Foi também membro fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1897.

 

 

Defendeu as liberdades individuais, o federalismo, o ensino técnico e o acesso das mulheres às faculdades. Foi também admirador do pianista Ernesto Nazareth (1863 – 1934), que ia escutar na sala de espera do Cinema Odeon. Era também grande fã dos Batutas e presença frequente nas apresentações do grupo no Cine Palais.

 

 

Ganhou o cognome de Águia de Haia do Barão do Rio Branco (1845 – 1912), ministro das Relações Exteriores, por sua participação na II Conferência de Paz, realizada, entre 15 de junho e 18 de outubro de 1907, em Haia, na Holanda, quando fez uma notável defesa do princípio da igualdade dos Estados. Foi como Embaixador Extraordinário, Ministro Plenipotenciário e Delegado do Brasil, cuja nomeação havia sido realizada, em 29 de abril de 1907, por decreto do presidente Afonso Pena (1847 – 1909).

 

 

Ao longo de sua vida foi deputado, senador e ministro da Fazenda do governo de Deodoro da Fonseca (1827 – 1892), primeiro presidente do Brasil.

 

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

Trecho de discurso proferido por Rui Barbosa no Senado, em 1914

 

Em 1910, foi candidato à Presidência da República, na chamada campanha civilista, mas foi vencido por Hermes da Fonseca (1855 – 1923).

 

 

 

Foi eleito juiz da Corte Internacional de Justiça, em 14 de setembro de 1921. Em agosto de 1922, sofreu um edema pulmonar. Cerca de um mês depois, recebeu a Grã Cruz da Ordem de S. Tiago, de Antônio José de Almeida (1866 – 1929), presidente de Portugal, em visita oficial ao Brasil.

Rui Barbosa faleceu, como já mencionado, em Petrópolis, em 1º de março de 1923, e foram-lhe concedidas honras de Chefe de Estado. Seu corpo foi velado na Biblioteca Nacional e enterrado no Cemitério de São João Batista, com grande acompanhamento popular, em 4 de março (O Paiz, 4 de março e 5 de março de 1923).

 

 

Em 1949, ano do centenário de seu nascimento, seus restos mortais foram transferidos para o Fórum Rui Barbosa, em Salvador, na Bahia (Correio da Manhã, 4 de novembro de 1949, primeira coluna; Diário de Notícias, 9 de novembro de 1949). Foi publicada uma matéria sobre a Casa de Rui Barbosa (Revista da Semana, 5 de novembro de 1949).

 

 

Em sua obra Ordem e Progresso (1974), Gilberto Freyre (1900 – 1987) o definiu como “o homem capaz de grandes façanhas e tremendas vitórias sobre gigantes luros e rosados; espécie de Davi brasileiro em face de Golias nórdicos ou germânicos”.

 

“Rui Barbosa foi, entre nós, refletida ou espontaneamente, o ideólogo de uma reforma da sociedade. (…) essa reforma pode ser chamada, dentro dos limites que indicarei, a ascensão da classe média”.

San Tiago Dantas (1911 – 1964) em Rui Barbosa e a Renovação da Sociedade

 

“Hoje sabemos que mais do que o seu vernáculo, do que o seu purismo, o que fica de Rui é a capacidade de sacrifício. Ele soube sempre perder. (…) Como a semente do Evangelho que precisa morrer para frutificar, ele soube morrer pelo dia seguinte do Brasil”.

Oswald de Andrade (1890 – 1954) em Rui e a árvore da liberdade

 

“Rui foi um humanista, não só pelo culto apaixonado do verbo, aprendido para além de sua mera significação pragmática, mas também pelo grau de seu desapego à certeza do êxito, pela sua virtù do risco, pelo amor à nobreza do gesto de optar”.

Miguel Reale (1910 – 2006) em Posição de Rui Barbosa no Mundo da Filosofia

 

* O discurso Oração aos Moços, de Rui Barbosa, foi proferido na formatura da turma de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo, lido, em de 29 março de 1921, pelo catedrático de Direito Romano, Reinaldo Porchat (1868 – 1953), que viria a ser o primeiro reitor da Universidade de São Paulo.

 

 

Andrea C.T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

BARBOSA, Ruy, 1849-1923. Oração aos moços / Rui Barbosa ; prefácios de senador Randolfe Rodrigues, Cristian Edward Cyril Lynch. – Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2019.

CARDIM, Carlos Henrique. A raiz das coisas – Rui Barbosa: o Brasil no mundo. Civilização Brasileira, 2023.

GABRIEL, Juan de Souza. Vitórias do pequeno Davi contra muitos Golias. O GLOBO, 1º de março de 2023.

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

SILVA, Leandro de Almeida. O discurso modernizador de Rui Barbosa (1879 – 1923). Dissertação de Mestrado. Minas Gerais: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2009.

Site Academia Brasileira de Letras

Site Casa de Rui Barbosa

Site JusBrasil

Site Senado Federal

A Reação Republicana

O artigo de hoje foi escrito pela historiadora Silvia Pinho, do Museu da República, uma das instituições parceiras da Brasiliana Fotográfica. É sobre a Reação Republicana, uma campanha política em torno da sucessão presidencial que mobilizou o Brasil, entre 1921 e 1922, cuja chapa oposicionista se opunha ao domínio de São Paulo e Minas Gerais na política nacional. Reuniu estados importantes – Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, mais o Distrito Federal – que queriam construir um eixo alternativo de poder.  Os candidatos à presidência e à vice-presidência da Reação eram o fluminense Nilo Peçanha (1867 – 1924) e o baiano J.J. Seabra (1855 – 1942). Nas eleições de 1º de março de 1922, foram derrotados pelo mineiro Artur Bernardes (1875 – 1955) e pelo maranhense Urbano Santos (1859 – 1922), que morreu antes de tomar posse. As fotografias são da Coleção Nilo Peçanha.

 

 

Acessando o link para as fotografias do Movimento Reação Republicana disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

 

A Reação Republicana

Silvia Pinho*

 

 

A eleição é um dos principais episódios da vida política de um país. Além de peça chave do sistema representativo, os momentos que a antecedem são marcados por debates que levantam questões de importância nacional. A forma como é realizada revela muito da organização social e política de uma sociedade. Nos anos de 1921 e 1922, uma campanha política em torno da sucessão presidencial mobilizou o país. Era a Reação Republicana, chapa oposicionista formada em reação ao domínio de São Paulo e Minas, reunindo estados importantes – Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, mais o Distrito Federal – que queriam maior participação na política do país, com o objetivo de construir um eixo alternativo de poder. A plataforma da Reação propunha mudanças na organização política e econômica do país, defendendo maior equilíbrio federativo, solução da crise financeira, diversificação agrícola, expansão da educação pública, incentivo ao desenvolvimento econômico e regeneração dos costumes políticos.

 

 

A Reação Republicana lançava como candidato à Presidência da República o político fluminense Nilo Peçanha, e como candidato a vice o governador da Bahia, J. J. Seabra. O então presidente Epitácio Pessoa apoiava a chapa oficial, formada pelo mineiro Artur Bernardes e pelo maranhense Urbano Santos. A disputa representava, sobretudo, uma fissura no pacto oligárquico que caracterizou a Primeira República, baseado na Política dos Governadores – o governo central apoiava os grupos dominantes nos estados, e estes, em troca, apoiavam a política do presidente da República – e na Política do Café com Leite, segundo a qual São Paulo e Minas Gerais decidiam quem seria o candidato oficial à Presidência da República (quase sempre vencedor) e traçavam o rumo das políticas nacionais.

 

 

A grande novidade da Reação Republicana foi sua campanha. Foi a primeira vez que se realizou uma campanha política para a Presidência da República de amplo alcance, sobretudo geográfico, com formação de comitês eleitorais nas mais diversas cidades do país. A bordo do Íris – navio fretado especialmente para esse fim –, Nilo Peçanha visitou vários estados brasileiros, fazendo comícios em praças e teatros, percorrendo as ruas, articulando alianças e conversando com as pessoas em busca de apoio.

 

 

Nilo Peçanha e J. J. Seabra sabiam que estavam em desvantagem em relação à chapa oficial, que dominava o jogo político na maior parte do país. Além disso, nessa época, o voto não era secreto e as fraudes eram prática comum. Porém, os membros da Reação pensavam ser possível reverter a diferença, assim como inibir as fraudes, mediante o convencimento da sociedade, trazendo-a para sua causa.

 

 

A campanha da Reação começou em 24 de junho de 1921 e, enquanto J. J. Seabra visitava estados do Sul, Nilo Peçanha partiu em excursão pelo Norte e Nordeste. À bordo do Íris, ele visitou o Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Espírito Santo e Distrito Federal. Em São Paulo, foi impedido pelo governo local de realizar seu comício, redigindo então um “Manifesto ao Povo Paulista”, no qual afirmava que a Reação era o “ideal renovador do Brasil e que varre a tutela usurpadora dos nossos direitos soberanos!”.

 

 

Embora fosse um movimento das elites políticas, a Reação atraiu a simpatia e conquistou a adesão de vários segmentos sociais insatisfeitos com o governo. Um dos mais importantes foi o grupo dos militares, cujo apoio foi fundamental para a força e a amplitude geográfica da campanha. A Reação Republicana também conquistou o apoio da maçonaria, de grupos feministas e de setores médios urbanos, além da participação efetiva da imprensa na promoção da campanha.

Em 1º de março de 1922, sob forte tensão, ocorreu a eleição. O pleito foi marcado por denúncias de fraude generalizada e a vitória coube ao candidato oficial, Artur Bernardes. Nilo Peçanha e J.J. Seabra, contudo, não reconheceram o resultado e passaram a reivindicar a criação de um Tribunal de Honra, que arbitrasse o processo eleitoral. Como a posse de Bernardes só se daria em 15 de novembro, os membros da Reação continuaram engajados nos meses que se seguiram, tentando mobilizar a opinião pública e encontrar uma solução política que revertesse a situação. Nesse entremeio, no dia 5 de julho, jovens militares – grupo que apoiou a Reação, mas que tinha força, ideologia e demandas próprias – se rebelaram no Forte de Copacabana, em um levante que, embora reprimido, seria o marco inicial do movimento tenentista.

 

 

Os esforços dos candidatos da Reação foram ineficazes e Artur Bernardes tomou posse no Palácio do Catete. Nilo Peçanha morreria pouco depois, em 1924. Em 1930, uma nova crise política, mais forte e ampla, irrompeu e reuniu novamente as oligarquias estaduais dissidentes, militares e setores urbanos, além de outros grupos insatisfeitos com o regime. Era a Revolução de 1930, que pôs fim àquele sistema político.

A Reação Republicana demonstra a complexidade do jogo político na Primeira República, visto muitas vezes de forma simplista e unívoca. O que se desvela, entretanto, é uma trama política dinâmica e múltipla, repleta de conflitos, nuances e atores variados, de um período rico e diverso de nossa história republicana.

 

 

A Coleção Nilo Peçanha, pertencente ao Arquivo Histórico e Institucional do Museu da República, é formada por cerca de 20 mil documentos, sobretudo textuais, sendo em sua maioria correspondências. O acervo foi formado, principalmente, através das doações feitas pela viúva Anita Peçanha em 1948 e por Armênia Peçanha, irmã do titular, em 1960. Constam da coleção também 547 fotografias, nas quais se destaca o conjunto de imagens que retrata a campanha Reação Republicana.

 

*Silvia Pinho é historiadora do Arquivo Histórico e Institucional do Museu da República