Paquetá na Coleção Antônio Manoel de Mattos Vieira

A família Mattos Vieira Guerra doou para o Instituto Moreira Salles (IMS), uma das instituições fundadoras da Brasiliana Fotográfica, em 3 de maio de 2018, um conjunto de 61 fotografias de Paquetá produzidas em 1925 possivelmente por João de Lacaille e, a partir delas, podemos fazer um passeio pela Ilha. Muitos leitores do portal têm curiosidade em saber a trajetória das coleções até chegarem às instituições. Por isso, hoje a Brasiliana Fotográfica publica a história da chegada dessas fotografias ao IMS, contada pela socióloga Roberta Mociaro Zanatta no artigo A história da chegada da Coleção Antônio Manoel Mattos Vieira ao Instituto Moreira Salles, parte de sua tese de doutorado O legado histórico nacional – memória, difusão e acesso: o caso da Brasiliana Fotográfica (2019). Paquetá já foi, provavelmente por sua beleza e proximidade do Rio de Janeiro, registrada por diversos fotógrafos, dentre eles Antônio Caetano da Costa Ribeiro (18? – 19?), Augusto Malta (1864 – 1957), Frederico Carlos Con, Jorge Kfuri (1893 – 1965)Juan Gutierrez (c. 1860 – 1897)Marc Ferrez (1843 – 1923)S.H. Holland (1883 – 1936) e Uriel Malta (1910 – 1994). Foi também o tema de um artigo do portal, A bela ilha de Paquetá, publicado em 28 de março de 2019.

 

 

Acessando o link para as fotografias da Coleção Antônio Manoel de Mattos Vieira disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

 

 

 A história da chegada da Coleção Antônio Manoel de Mattos Vieira ao Instituto Moreira Salles

Roberta Mociaro Zannata*

 

Cada coleção possui uma trajetória particular e chega ao IMS por meio de algum tipo de negociação específica, seja diretamente com o dono da coleção ou com seus familiares e representantes. Em 2018 pude acompanhar a doação de um acervo com o perfil característico da Brasiliana Fotográfica, com data de produção das imagens até a década de 1930 e com conteúdo relevante para o entendimento social e cultural da época. É a Coleção Antônio Manoel de Mattos Vieira, que após receber os procedimentos de higienização, conservação, arranjo, codificação, digitalização, acondicionamento e catalogação em banco de dados teve parte de seu conteúdo selecionado para integrar a Brasiliana Fotográfica. Trago aqui um breve relato sobre seu processo de doação, como forma de ilustrar como se formam as coleções, mesmo lembrando que cada uma tem uma história própria.

Em 04 de janeiro de 2018, Márcio Miranda Ferreira, fotógrafo, morador da Ilha de Paquetá, entrou em contato por e-mail com o IMS com a seguinte mensagem:

 

“Sou morador de Paquetá e uma amiga tem guardada uma série de negativos grandes, em vidro, documentando a ilha no início do século passado. Gostaria de saber se podemos estabelecer algum tipo de colaboração com vocês visando a preservação de tais documentos.
Se houver algum interesse, por favor, nos informe que tipo de informações adicionais precisariam receber para dar alguma orientação.

                                                                                                                                                                                                                                     Atenciosamente,
                                                                                                                                                                                                                                      Marcio Ferreira”

 

Respondi seu e-mail e começamos uma troca intensa de informações, tais como: tamanho dos negativos, tipo de material, estado de conservação, se sabiam quem era o fotógrafo, qual o conteúdo das imagens. Ana Emília de Mattos Vieira Guerra, que aqui chamaremos de Anina Guerra, neta de Manoel de Mattos Vieira, herdeira responsável pela doação passou a ser incluída nos e-mails e, por fim, no dia 03 de maio de 2018 foi realizada a retirada, em Paquetá, na casa que pertenceu a seu avô, de 63 negativos de vidro, 13x18cm, retratando parte do cotidiano de sua família e da Ilha de Paquetá, no início dos anos de 1920.

 

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Como os negativos estavam acondicionados no momento da retirada

 

Caixa do fabricante das placas de vidro

Caixa do fabricante das placas de vidro

 

 

 

 

Logo que Márcio enviou parte das imagens ficou evidente para o curador da Área de Fotografia do IMS, Sergio Burgi, a importância do conjunto e seu valor como registro histórico, prontamente a doação foi aceita. Vale destacar que outro importante fotógrafo que retratou Paquetá no século XIX foi Marc Ferrez, algumas dessas imagens se encontram no acervo do IMS e da Brasiliana Fotográfica:

 

 

 

Se passaram 5 meses entre o primeiro e-mail de Márcio e a doação efetiva de Anina Guerra. Nesse processo estabelecemos certa proximidade e logo soube que Anina Guerra e Márcio fazem parte de um grupo de amigos que defendem a preservação do patrimônio memorial de Paquetá. No dia da retirada do acervo, 03 de maio de 2018, eu e Rodrigo Bozzetti, responsável na época por parte do processamento técnico dos acervos do IMS, fomos a Paquetá formalizar a doação. Para nossa surpresa, Anina Guerra organizou um almoço e reuniu o presidente da Casa de Artes de Paquetá, Márcio e sua esposa, além de outros amigos. A assinatura do contrato de doação e a retirada do acervo foram comemorados e a contrapartida da doação foi o compromisso de restauro, preservação e difusão das imagens dos negativos, que levam o nome de seu avô como titular da coleção.

 

 

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Casa de Anina Guerra que pertenceu a seu avô Manoel de Mattos Vieira

 

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Anina Guerra e Márcio Miranda Ferreira

 

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O historiador Rodrigo Bozzeti

 

Cerca de um mês após a doação, Anina Guerra foi com seus filhos Maria Helena Guerra Gomes Pereira, psicóloga clínica, residente em Paris, e Pedro Affonso Guerra Gomes Pereira, advogado, que vive em Lenzburg, na Suíça, com sua esposa Carmen, ao IMS para conhecer o trabalho realizado com os acervos. Nessa ocasião pedi a ela que escrevesse um relato sobre a trajetória de seu avô, do qual transcrevo alguns trechos abaixo:

Meu avô, Antônio Manoel de Mattos Vieira, nasceu em 1º de julho de 1883, na Casa da Pedreira, Freguesia de Verim, Póvoa de Lanhoso, Distrito de Braga, em Portugal. Filho de Manuel Antônio Vieira e de Maria Joaquina de Mattos, viúva, com três filhos do seu primeiro casamento.
Antônio era o sétimo de nove irmãos, do segundo casamento de sua mãe. O filho mais velho, Álvaro, herdou a Quinta da Pedreira, como o costume da época, mas morreu muito jovem, deixando herdeiros, que até hoje cuidam da propriedade. O segundo filho, Francisco Manuel, era Padre; o terceiro, Manuel Inácio, farmacêutico; o quarto, Cândido Adelino, médico; as três irmãs, Lucinda, Adelaide e Aurora, se dedicaram a obras de caridade e o filho caçula, Joaquim Augusto, que também veio viver no Brasil, em Pernambuco, dedicou toda sua vida ao cinema, tornando-se, em 1953, o decano dos cinematografistas do Recife.

A vinda de meu avô para o Brasil não foi uma fuga planejada, na verdade, foi um arroubo de juventude. Ao saber que seria castigado por ter sido reprovado no Liceu, decidiu, aos quinze anos, fugir para o Rio de Janeiro. Conseguiu comprar um bilhete de navio, na terceira classe, e empreendeu a viagem, não atendendo aos apelos de seu pai.
Logo nos primeiros dias de viagem notou que o passadio do navio e as acomodações nos camarotes de terceira classe não correspondiam aos seus sonhos. Decidiu então trocar a única moeda de ouro que trazia, por um bilhete na primeira classe. Sentiu-se cômodo com seus novos companheiros de viagem e, apesar de sua pouca idade, conquistou a simpatia dos mais velhos, por sua afabilidade e elegância de trato à mesa. Foi justamente, nas intermináveis conversas dos jantares no transatlântico, que conheceu os irmãos do Visconde de Vilela, um mecenas português, que doou as portas esculpidas em bronze para a Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Nessas longas conversas a bordo, meu avô descobriu, com surpresa, que o primeiro marido de sua mãe era também membro da família Vilela.
Em três de maio de 1898, o Senhor Mattos (como passou a ser conhecido) desembarcou na cidade do Rio de Janeiro, e começou a trabalhar na casa Sotto Maior & Cia, por indicação da família Vilela. Foi lá que iniciou seu aprendizado em artes gráficas, além de viajar pelo Brasil, representando os produtos comercializados pela Firma.
(…)
Em julho de 1903, o Senhor Mattos decide casar-se e, seguindo as regras da Casa, deixa a firma Sotto Maior. Começa então a trabalhar na gráfica Correa Jorge, adquirindo assim uma certa independência. Em três de setembro de 1904, casa-se com Anna Homem de Moraes e Azevedo, cidadã portuguesa, nascida nos Açores e recém chegada ao Brasil, com sua família. Por ser menor de idade (16 anos), não tinha adquirido ainda o sobrenome paterno, como o costume da época. Ao casar, adota o nome de Anna d’Azevedo Vieira e posteriormente passa a usar o nome Anna de Mattos Vieira.
Foi em 15 de maio de 1909, que finalmente o Senhor Mattos conseguiu alugar, na Rua do Hospício, 148, as máquinas de litografia e tipografia, para ter seu próprio negócio, dando início à Firma A. Steele & Mattos, em sociedade com o Sr. Armando Steele. Em 1916, a gráfica foi transferida para a Rua Buenos Aires 256 e 258, com sede própria, tendo seu nome mudado para Cia Gráfica Steele & Mattos. Nesse ano foi incorporado também um novo sócio, o Senhor Carlos Moraya.
A partir de 1916, por indicação médica, a família Mattos Vieira passa a frequentar regularmente a Ilha de Paquetá. Inicialmente alugam a casa do Diplomata Joaquim Nabuco, na Praia da Covanca e posteriormente, com a recusa do Diplomata em vender a casa, decidem construir sua própria casa na Praia dos Estaleiros, atualmente Praia dos Tamoios, cujo terreno já havia sido comprado em 1912.
A casa foi o grande orgulho de minha avó Ana. São dela os desenhos iniciais, feitos em aquarela, da faixada da casa e do jardim de inverno, que mais tarde, foram refeitos pelo desenhista francês Senhor Raizon, que trabalhava para a Gráfica de meu avô. A faixada da casa foge completamente à arquitetura brasileira da época, indicando a forte influência da arquitetura colonial inglesa, na África, e as saudosas lembranças dos Açores. A grande varanda frontal em arco, de frente para o mar, e o jardim de inverno, nos fundos, como um solarium, fechado por uma luminosa claraboia, são traços característicos dos sonhos de minha avó. Também foi dela a ideia de dividir o ambiente social em duas salas, separadas por uma grande porta branca, em cristal bisotado, que se abre em par.
Em 1922, com a família aumentada (dois filhos homens e três mulheres), e os negócios prosperando, a casa na Ilha de Paquetá foi finalmente inaugurada, com mais um acréscimo de terras, que compuseram o jardim lateral e a passagem para a entrada do barco. (…)”

Ana Emília também nos contou que seu avô, sócio da tipografia Firma A. Steele & Mattos, amante das artes impressas, cultivava forte apreço pela fotografia e que no início da década de 1920 contratou um fotógrafo, possivelmente João de Lacaille, para fazer um ensaio tendo a Ilha de Paquetá como cenário e sua família como protagonista. Desse ensaio fotográfico resultaram os negativos de vidro doados ao IMS.

A partir destes relatos podemos traçar parte do perfil de um homem que se interessava pela fotografia a ponto de contratar um fotógrafo profissional, nos anos de 1920, para ir a uma ilha e lá produzir um conjunto significativo de fotografias, quando essa ainda não era uma prática popular e financeiramente acessível à grande parcela da população do Brasil. A fotografia era uma arte restrita a certas camadas da sociedade e para reduzir seus custos de produção os fotógrafos muitas vezes reutilizavam as placas de vidro na realização de novas fotografias, o que faz com que os negativos em vidro que sobreviveram sejam valorizados como raros.

 

 

 

*Roberta Mociaro Zanatta é Doutora em Ciências Sociais, coordenadora do Núcleo de Catalogação e Indexação do IMS e uma das responsáveis pela gestão e atualização de conteúdos do portal Brasiliana Fotográfica.